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HQ’s sexualizam e TRANSFIGURAM mulheres em objetos

No mês de março de 2015, sites americanos especializados em quadrinhos divulgaram o novo uniforme da Mulher Maravilha. Nessa versão especialmente feita para a coleção dos Novos 52, que são relançamentos de toda a linha de histórias da DC Comics, a amazona está com uma armadura que cobre a maior parte do seu corpo.

O assunto gerou discussão na internet, algumas pessoas defendiam o redesign enquanto outros balbuciavam contra. Chegaram a chamar David Finch de puritano e conservador, outros deram passos mais largos e foram infelizes ao dizer que não compravam gibis para ver mulheres vestidas ao pescoço, e que o publico das HQs era masculino, e por isso a opinião feminina não precisaria ser considerada.

Por outro lado, a feminista e autora do Collant sem Decote, Rebeca Puig, se posicionou a favor e rebateu os argumentos que chamavam de “conservadorismo”. Mudanças são coisas boas, todos podem ter representação. “Conservadorismo é não questionar o status quo dos quadrinhos que sempre foi o de vitimar e diminuir as personagens femininas em prol dos personagens e fãs masculinos.”

É verdade, a maioria do público das histórias em quadrinhos são homens, mas esse cenário existe porque nunca houve uma preocupação dos produtores em elaborar histórias para meninas, e sim continuavam perpetuando o que já existia.

O incômodo com o uniforme, que preza pela praticidade e não pela exibição, é apenas um reflexo do mundo que os autores construiram. Ao exibir heroínas e vilãs com corpo cheio de curvas, cintura fina, quadril e seios perfeitamente arredondados, sustentado por um par de pernas compridas e de contornos delicados, só servem para o deleite masculino.

Para a doutora em História pela UnB Selma Regina Nunes Oliveira, as mulheres de papel fixam padrões de beleza a serem seguidos e consumidos. “Elas fixam a identidade feminina enquanto reafirmam os valores masculinos”, como pontua a professora em seu artigo “O Jogo das Curvas”.

Memória das “super-HQ’s”

Segundo o site especializado, HQ Quadrinhos, a primeira revistinha que tratou de uma personagem com superpoderes nasceu em 1936, com a criação do The Clock pelo artista George Brenner. Outras HQ’s surgiram, como Superman (1938), Capitão América (1940), e as mulheres continuavam sendo coadjuvantes.

A criação da Mulher Maravilha foi a contrapartida dessa lógica. Em 1941 a amazona saiu pela primeira vez, na oitava edição da revista All Star Comics, nos Estados Unidos da América e seu nascimento não foi por acaso. Os anos de 1930 e 1940 foram marcantes exatamente pelas mulheres ocuparem espaços que antes eram privilégios masculinos, principalmente graças à Primeira Grande Guerra.

Nem tudo são flores

Apesar da criação de outras diversas super-heroínas como Miss Marvel (1968), Mulher-Gavião (1940), Supergirl (1984), Zatanna (1964), a forma como a mulher é representada não mudou. As mulheres aparecem de forma redutora, como as mocinhas desamparadas, vilãs que tentam seduzir o herói, ou heroínas com roupas e posições que destacam mais ainda esses atributos, em uma própria representação do sexo.

Os quadrinhos refletem o imaginário, são desejos e projeções. Os corpos hiperssexualizados produzem discursos, estão carregados de significados e valores, tanto de quem faz como de quem lê. Assim, as qualidades das heroínas não estão em sua capacidade ou força, como no caso do homem, e sim na objetificação do seu corpo.

O incrível caso da Viúva Negra

Natasha Romanoff, uma super-espiã russa, preparada para ser uma assassina. Em uma missão, se infiltra nas Indústrias Stark (propriedade do Homem de Ferro) e se aproxima do Gavião Arqueiro para roubar segredos de Stark, mas acaba se envolvendo em um romance.

Depois disso, ela se junta à equipe e passa a ajudá-los nas missões. O problema é que ela quase sempre está em segundo plano. Parece que ela serve apenas para embelezar, produzir humor e desenvolver um romance com alguém. Exemplo disso é a sua participação no segundo filme da série dos Vingadores, no qual ela é a arma para acalmar o Hulk, por quem começa a desenvolver um sentimento amoroso.

Para aumentar a indignação, os atores Jeremy Renner e Chris Evans, que interpretam Gavião Arqueiro e Capitão América, chamaram a Viúva Negra (vivida por Scarlett Johansson) de “vadia”. A declaração aconteceu no dia 23 de abril durante uma entrevista ao site britânico de entretenimento Digital Spy. Quando perguntados sobre o relacionamento entre a Viúva Negra e Bruce Banner (Hulk, interpretado por Mark Ruffalo), os dois a chamaram de vadia, ou “uma completa prostituta” (“whore”, no original), como dito por Evans.

Com as críticas, tiveram que pedir desculpas, mas não foi o suficiente para que parassem. Na semana seguinte, no dia 4 de maio, Jeremy Renner estava fazendo mais comentários maldosos no programa do humorista Conan O’Brien: “Veja bem, eu estava falando de uma personagem fictícia e de um comportamento fictício, mas Conan, se você dormir com quatro dos seis Vingadores, não importa o quanto você tenha se divertido, você é uma vadia. Só digo isso. Eu seria uma vadia”.

Novidades e mudanças

Segundo recente pesquisa da revista Exame, o mercado de HQ/filmes/games tem quase 46% de consumidoras mulheres. Assim sendo, as empresas têm sim que agradar a todos e não apenas corresponder ao velho fetiche de quando eles foram inventados 60-70 anos atrás, quando era, sim, coisa de “homem”.

Mesmo que seja para não perder audiência, Marvel e DC têm se reinventado aos poucos. No ano passado a Marvel Comics anunciou que o Thor (1962) passaria a ser uma mulher. “Não é a She-Thor”, disse Jason Aaron, autor da nova série “Thor”, em comunicado. “Não é Lady Thor. Não é Thorita. É Thor.”

O coronel da PM goiana Divino Alves de Oliveira, fã e leitor assíduo das revistas, revela que leu a versão nova: “É interessante, chama a atenção essa mudança abrupta. Eles tentam colocar um apelo feminista, uma legião de super-heroínas que vem dar o apoio ou conhecer a nova Thor, mas no geral a história não muda nada”.

A DC lançou em maio desse ano um livro chamado “My First Book of Girl Power” (Meu primeiro livro sobre poder feminino). É uma obra infantil e que tem como objetivo ensinar às crianças sobre a importância e o valor da mulher. São vários desenhos de heroínas acompanhadas de frases sobre empoderamento. “Garotas são fortes e meigas. Elas podem fazer coisas incríveis”, estampa uma das páginas.

A ilustradora e estudante de moda da Universidade Federal do Ceará Brendda Costa Lima considera a iniciativa legal até certo ponto. “Que tipo de empoderamento é esse que ressalta apenas mulheres com o mesmo biotipo, mesma cor e com as roupas que ainda remetem a sexualização da mulher?”, comenta a artista.

A discussão vai além

Apesar das tentativas de agradar esse novo público, os editores parecem não entender que não basta jogar um papel feminino na história para que isso repare os erros do passado. Não basta pegar um super-herói já construído, atribuir seios, uma personalidade mais passiva e achar que isso representa um grupo. É preciso mudar, incluir mulheres trans, ‘sair da caixinha”. É preciso dar poder, independência e, principalmente, voz. Mulheres já foram historicamente prejudicadas por não ter voz, perpetuar esse sistema é morder o próprio rabo.

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