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Vamos dar valor a quem dá murro. Sarau do Burro de noite a dor meço

Abro o livro que ganhei quando estive em Belo Horizonte. Era a coletânea “Do Burro”, a segunda edição. Na dedicatória, Daniel Minchoni escrevera: “leve esses coices para Goiás, Walacy”. Goiás também é terra de burros, logo penso. De puxar carroça, de bater a mão em ponta de faca e tentar brotar da ferida qualquer coisa como leite.

— Fazer literatura no Brasil é igual tirar leite de pedra, Walacy.

Lembro da frase que Marcelino Freire, agitador cultural e organizador da Balada Literária, em São Paulo, na Vila Madalena, havia me dito alguns dias antes de topar com os coices de Daniel.

Daniel é de Natal, no Rio Grande do Norte, assim como as outras duas poetas de peso que participam do Coletivo 132, que auxilia na organização dos eventos e publicações do Burro: Anna Zêpa e Sinhá, que pelo laços da poesia é a mulher de Minchoni e espera dois burricos no bucho. Pelo selo, eles organizam o Menor Slam do Mundo, uma batalha de poesia micro, onde o competidor tem apenas 30 segundos para declamar seu poema e concorrer ao título de Campeinho de Verso Ligeiro e levar o “cinturinho” pra casa. Também se tem o Sarau do Burro.

Muito antes do contato cara na cara, ouvia e declamava alguns poemas de Daniel Minchoni pelos saraus de Goiânia. A maioria eu achava por gravações feitas no Sarau do Burro que eram depois divulgadas via YouTube. A poética de Minchoni, marginal nato, assim como boa parte dos frequentadores do sarau, é na raiz da fala, na letra fazendo ‘ploc’ na boca e, principalmente, a cidade de São Paulo em ecos.

Daniel Minchoni é fala na boca da poesia. Ploc. É a boca de São Paulo. E o Sarau do Burro é sua sala livre. O sarau acontece, desde 2014, por aí, na galeria de arte A7MA, mas também tem edições em locais como o Sesc Pinheiros e outros lugares.

– Por aí.

A próxima edição, por exemplo, deve acontecer no Sesc, que Daniel chama carinhosamente de Sexy Pinheiros. Chamado de “NoLombinho do Burro”, a edição é uma variação do sarau, onde as atrações e a programação são mais extensas. Será também momento de lançamento do videoclipe “Literatura Ostentação”. Um manifesto-gozação, com bem menos manifesto, e mais ostentação, em referência ao viral da internet chamado “Rei do Camarote”. Na verdade, trata-se de um funk criado por Minchoni com referências aos poetas “ostentação”, como Paulo Coelho, por exemplo.

No Sarau do Burro, o original mesmo, eu não fui. Porém, estive lá mesmo sem ir. Boa parte dos poetas que participam e fazem o sarau acontecer toparam comigo enquanto eu tentava auxiliar na produção da Balada Literária, em São Paulo. A Balada é um evento extra-flip, quase um flip pobre, que o poeta e agitador cultural, Marcelino Freire, organiza há mais de nove anos.  A Flip (Festival Literário Internacional de Paraty) ocorre no mês de julho e é, atualmente, o principal evento de literatura do país.

Marcelino repete sempre em tom de zombaria:

– Se eu tivesse milhões, eu ressuscitava o Camões.

A semana da Balada Literária é esperada sempre pelos poetas que frequentam o Sarau do Burro. Tudo na Vila Madalena que, depois percebi, é o ‘mocó’ desses marginais.

Quanto ao papel, o selo publica, anualmente, a coletânea Do Burro: uma junção de poemas que foram declamados no sarau e selecionados por Minchoni para o livro. Na terceira página da segunda edição da coletânea tem uma descrição do sarau, escrita em primeira pessoa por um poeta e doutor em literatura, chamado Burro Drummond de Assumpção:

quando idealizei o sarau do burro não pensei que fosse ter esse espírito indomado. de povo de rua. quando comecei a fazer, 2009, não sabia nem no que ia dar. quando comecei a formatar fazendo, dar cara a prêmio, não imaginava que, hoje, olhando pra trás, fosse julgar possível essa bagunça organizada. auto gestão. hoje sinto que mais que um espaço para livre experimentação o sarau se tornou um dos poucos espaços poéticos abertos ao diálogo.

O personagem e organizador do burro, criado por Minchoni, descreve sobre o formato: sem microfone e sem inscrição.

coisa insana de sampaulo, permite que se dialogue uma poesia com a outra. Simples assim.

Isso porque se um poeta fala algo que “fere firme ou foge” é possível que outro venha, na lata, e responda a altura.

no sarau do burro a lira é pesada, e a resposta direta, sem titubear. quem tem boca fala, quem tem língua vai. a entrada e as palavras são francas. o sarau do burro é vírgula, não é ponto final.

Daniel não tem vírgula. Foge da hierarquia do maiúsculo. Fala sempre sem concluir. Na maioria dos seus poemas exclui os pontos, ou seja, os limites. A resposta é direta e, assim como o sarau do burro, vem da linguagem da cidade grande, da cidade de São Paulo.

“Vamos dar valor a quem

Trabalha, vamos dar valor

A quem dá murro. O burro

É quem merece uma medalha.

O burro é quem trabalha.

O burro é quem da murro.

O burro é que trabalha de

Verdade. Bota água na cidade.

Trabalha na construção.

No meu burro não tem dia

Nem tem hora. Saio pelo mundo

Fora procurando diversão.

Eu sei vocês todos reconhecem

Que o burro é quem merece ter

no peito um medalhão.”

Elino Julião

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