Hoje é o quinquagésimo aniversário de lançamento do famigerado álbum de estúdio Rubber Soul, da banda britânica The Beatles. Quando se fala em Rubber Soul, não se fala apenas em gosto ou um ótimo álbum dos Beatles, mas em uma coletânea que influenciou sua geração irreversivelmente em uma espécie de primavera da música popular, que perdurou pelos anos 60 até meados de 1970, quando foi se difundindo em outros movimentos.
Lançado em 3 de dezembro de 1965, o álbum possui um pouco de sua complexidade poética e lúdica na capa, que originou o seu título. Até então, não havia grande preocupação com a arte das capas de discos, que apenas cumpriam seu papel ilustrando os artistas daquele trabalho em uma fotografia crua. O destaque era evidentemente dado ao nome do grupo ou artista, de uma forma quase didática ao ouvinte que fosse à loja de discos.
O sexto álbum dos fab four não seria diferente, senão por um curioso acidente: O fotógrafo que havia executado um ensaio com os roqueiros estava mostrando-nos as fotografias em um slide, quando uma delas se deslocou e causou um efeito de distorção na imagem, o que imediatamente chamou a atenção dos integrantes. O título veio logo em seguida, em uma alusão à elasticidade da borracha: “Rubber Soul” (ou alma de borracha, em tradução livre) – um nome um tanto quanto poético para um álbum ambicioso. Outra curiosidade em relação à capa, é que ela não possuía o nome da banda, apenas do álbum, inaugurando um comportamento odiado pela indústria fonográfica.
Em termos de conteúdo, o disco apresenta influências até então inexploradas, como a folk music (confessamente inspirada pelo ídolo Bob Dylan), música indiana, country, além do sempre presente rockability de Chuck Berry e companhia. A poesia apurada é outra cortesia de Dylan, que influenciou fortemente o grupo por seu trabalho lírico de vanguarda apresentado àquela época (anteriormente ao lançamento do álbum, o artista folk havia lançado dois de seus melhores discos no mesmo ano: Bringing It All Back Home e Highway 61 Revisited).
Naquela época, lançar um disco não era lá algo muito simbólico, pois a indústria da música arrecadava mesmo com o lançamento de singles: hits feitos para tocar à exaustão nos rádios. A ideia de reunir uma coletânea musical com certa organicidade que desse razão de ser para a obra como um todo, foi uma experiência inovadora proposta pelos Beatles neste disco.
Mas talvez, o grande diferencial do disco seja mesmo os arranjos e recursos utilizados em estúdio, numa forma de experimentalismo que abriu portas para tantos outros artistas no decorrer da contracultura. Rubber Soul é uma espécie de embrião da psicodelia que nos rendeu o melhor da música popular até os dias de hoje. As guitarras magistrais alinhadas aos vocais em coro hipnotizantes regados a muita reverberação despertaram o reboliço dos críticos e do público, bem como a ambição e rivalidade de outras bandas, sobretudo dos Rolling Stones e dos Beach Boys.
Depois de Rubber Soul, não cabia mais a estes artistas serem apenas uma banda de rock para a histeria jovem, era preciso uma profunda complexidade musical como expressão artística para alimentar seus egos feridos. O disco amadureceu os Stones, que lançaram álbuns memoráveis ao longo daqueles anos, bem como desencadeou o Magnum opus dos Beach Boys: o disco Pet Sounds, lançado no ano seguinte e apontado como páreo ou até superior ao último trabalho dos Beatles. O que os praieiros não esperavam era que o vislumbre causado pelo disco tocaria os garotos de Liverpool e os faria desembestar o sucessor de Rubber Soul: o estarrecedor Revolver (1966), que abateria os ânimos dos garotos da praia, causando uma famosa obsessão de seu líder Brian Wilson em tentar (inutilmente) superá-los.
A faixa de abertura, Drive My Car, composição majoritária de Paul McCartney, se inicia com um belo riff de George Harrison, um prelúdio para o bom e animado rock n’ roll que sempre foi a base da banda. Por falar no beatle da guitarra principal, o disco possui suas composições mais expressivas até então (pois no início o trabalho de composição era uma exclusividade da dupla Lennon/McCartney), com a irresistível Think for Yourself e a imersiva If I Needed Someone, que parece ecoar pelas entranhas com seus sublimes vocais.
Um dos trabalhos mais memoráveis de Paul McCartney é Michelle, uma balada romântica em ambientação noturna, que retrata uma paixão do eu lírico com uma francesa, onde o idioma parece não ser empecilho suficiente para interromper o romance. No mesmo clima boêmio, John Lennon lamenta os dilemas de um relacionamento a longo prazo na faixa Girl. O beatle mais famoso mostra mais de sua genialidade em Nowhere Man, uma música em tom alegre que desnuda as questões existencialistas do ser humano, ou o tolo que há em cada um de nós enquanto vivemos uma vida automática imposta pela sociedade. Lennon revela ainda o seu sentimentalismo em In My Life, uma das mais belas canções de amor da música popular.
Por fim outra canção que não pode deixar de ser mencionada é Norwedian Wood, que narra uma cômica aventura extraconjugal de John que não deu certo. A melodia hipnotizante e o violão folk são recheados pela inesperada citara ou guitarra indiana, introduzida por Harrison, que estudava música indiana à época, feito inédito copiado a exaustão em grandes obras “pós-rubber soul”.
O álbum surpreende por não ser a obra prima dos Beatles, mas um “mero” divisor de águas, entre o pop rock jovial e uma nova perspectiva de música moderna, que elevou o grau de complexidade e imersão para quem queria experimentar a música popular como verdadeira arte. Quem diria que o novo cinquentenário seria um prelúdio para Revolver (1966), Sgt Peppers (1967), White Album (1968), Abbey Road (1969), entre outros? Quem ainda duvida da relevância do aniversariante, deve saber que ele influenciou artistas como Rolling Stones, Jimi Hendrix, The Who, Cream, Janis Joplin, Pink Floyd, Black Sabbath, Led Zeppelin etc.
No Brasil, os Beatles, a partir de Rubber Soul, influenciaram, sobretudo, a Tropicália e seus movimentos posteriores: artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Mutantes, Jorge Ben Jor, Novos Baianos, Zé Ramalho, além da notável carga musical reconhecível no Clube da Esquina, fundando por Lô Borges e Milton Nascimento. Música popular era mal vista pelos críticos musicais, que a achavam carente de conteúdo. Parece que o jogo virou, não é mesmo?