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Com 'A Hora dos Ruminantes', José J. Veiga criou romance que figura entre os grandes da literatura brasileira

José J. Veiga demorou a estrear na literatura. Aos 44, já um escritor experimentado na redação de O Globo e Seleções, revista da qual se tornou editor-chefe, o escritor goiano nascido em Corumbá de Goiás no ano de 1915 lançou “Os Cavalinhos de Platiplanto” (1959), livro de contos que tinha pouco mais de 150 páginas e era tão revolucionário, em termos estilísticos e narrativos, que a crítica não sabia em qual rótulo literário encaixá-lo. Diziam que era literatura fantástica, semelhante à de Gabriel Gárcia Márquez, já outros faziam ressalvas a definição.

Mas essa obra reunia 12 contos que, como “A Ilha dos Gatos Pingados”, “A Usina Atrás do Morro”, “Entre Irmãos” e “A Espingarda do Rei da Síria”, considerados histórias curtas comparáveis – sem exagero – às dos contistas Machado de Assis e Clarice Lispector, despertou a curiosidade do crítico literário Antonio Candido. Maior estudioso brasileiro em matéria de literatura, o autor de “Formação da Literatura Brasileira” afirmou que os textos possuíam “uma espécie de tranquilidade catastrófica”. Pelo mesmo caminho foram Silviano Santiago e José Castello.

Sete anos depois, dentre os livros, que se multiplicaram e foram além do gênero conto, destaca-se “A Hora dos Ruminantes” que, de longe, é um dos mais representativos da produção de Veiga. Para o ensaísta Antonio Arnoni Prado, que assina o prefácio da edição, foi por meio do romance que o goiano conseguiu “nos revelar uma singularidade inventiva que desde logo o destacou dos demais escritores do período”. Nesta obra, em relação ao volume de estreia, a grande beleza está no traçado dos personagens e na limpidez dos diálogos, numa prosa direita, simples e coloquial.

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Veiga possui características que os escritores gostariam de ter, como agradar diferentes tipos de leitores - Foto: Facebook/ Reprodução

A história se passa numa pequena cidade chamada Manareirema, cuja rotina é alterada por acontecimentos inexplicáveis. Num primeiro momento, uma legião de homens, todos de origem duvidosa, decide acampar na cidade. Temendo represálias, os moradores especulam sobre os motivos que levam o grupo até o município. E não menos estranho, como se apenas a fantasia desse conta do realismo, o vilarejo é tomado por cães, que chegam às dúzias e mudam a ordem normal das coisas, com as pessoas acuadas em suas casas, trancadas nelas e os bichos passeando numa boa.

Por esses motivos de ordem narrativa, José J. Veiga possui características que os escritores gostariam de ter, como ser capaz de agradar tipos diferentes de leitores, desde os mais jovens estudantes até aqueles já amadurecidos, admiradores de Murilo Rubião, por exemplo. Cabe dizer que, com o relançamento da obra completa de Veiga pela Companhia das Letras, sob a chancela de ensaístas em prefácios analíticos, além de fotos e sugestão de leitura, o escritor ocupa um lugar que lhe é seu por esforço.

Primeiro, como o público observou quando a mesma Companhia das Letras publicou no ano passado os “Contos Reunidos” de José J. Veiga, o autor goiano deixou uma marca indelével na melhor tradição literária do Brasil. Segundo, para citar o jornalista Álvaro Costa e Silva, Veiga não joga fora o tempo do leitor ao criar histórias lúdicas. O projeto da editora, que começou com os títulos “Os Cavalinhos do Platiplanto” e “A Hora dos Ruminantes”, acertou na mosca ao lançar belas edições, com ensaios em forma de prefácios assinados por Silviano Santiago e Arnoni Prado.

É importante lembrar, contudo, que José J. Veiga esquivava-se quando lhe comparavam com Gárcia Márquez, Murilo Rubião ou até mesmo Julio Cortázar, mestres da narrativa fantástica. Segundo Veiga, sua literatura era “uma literatura realista: nem fantástica, nem mágica”. Ou, para referenciar o Arnoni Prado, bastante original e estranha ao criar uma realidade surreal em que se serve de uma linguagem coloquial, como se o que estivesse fazendo na realidade fosse uma literatura regionalista.

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José J. Veiga tornou a beleza e o absurdo marcas de sua literatura - Foto: Facebook/ Reprodução

Beleza e absurdo, além da inocência e brutalidade sem perder o lirismo da fantasia, se tornaram marcas do escritor: ele conquistou, com todos os méritos que lhe eram de direito, um espaço entre os maiores prosadores da literatura brasileira do 1930 para cá. Trajetória essa, é necessário lembrar, imprimida pelas tintas da Galáxia de Gutenberg, entre 1941 e 1989.

Nos anos 1980, José J. Veiga assinou uma coluna de crônicas no Diário da Manhã em que emprestava seu atento olhar para o cotidiano, como na crônica “Uns Podem, Outros Não?”, onde diz que os estudantes são gente fina e amanhã estarão “fazendo leis, administrando a justiça” e os outros “são gente trabalhadora, pobre”.

Veiga virou de ponta cabeça a imaginação, desarticulando a estrutura da narrativa e da técnica de suspensão da expectativa realista. Naquele tempo, predominavam os romances sociais, como “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, e “Fogo Morto”, escrito por José Lins do Rego. São herdeiros de 30.

No entanto, o escritor goiano juntou esses elementos e integrou-os a outro movimento da prosa moderna, criando uma efervescência que tem em João Guimarães Rosa o grande expoente, quem – por sinal – deu-lhe um empurrão para publicar “Os Cavalinhos de Platiplanto” e convenceu-lhe a adotar o J do nome da mãe (Jacintho) no meio da assinatura.

Escritor fundamental para o modernismo na literatura goiana, cuja obra ecoou a proposta de Mário e Oswald de Andrade, José J. Veiga – órfão da mãe aos dez anos – partiu, aos 84 anos, em 1999. Ele morava no Rio de Janeiro, cidade na qual cursou a Faculdade Nacional de Direito. Como diz narrador de “A Hora dos Ruminantes”: “A fala de cada um deveria ser dada em metros quando ele nasce. Assim quem falasse à toa ia desperdiçando metragem, um belo dia abria a boca e só saía vento.”

A Hora dos Ruminantes

Autor: José J. Veiga

Gênero: Literatura fantástica

Editora: Companhia das Letras

Preço: R$ 49,90

A HORA DOS RUMINANTES - José J. Veiga - Grupo Companhia das Letras

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