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Filipe Catto anuncia continuação de projeto em que canta Gal Costa

Voz transgressora, artista emociona público brasileiro com homenagem que deve guiar repertório de show realizado em Goiânia

Foto: Danilo Zocatelli / Divulgação Foto: Danilo Zocatelli / Divulgação

Não sei se ouço a música “Lágrimas Negras” mais uma vez. Ou se paro por aqui e sigo a ordem do disco fatal. Vou, se é que me entendes, adiante. Purifico-me em contratenor avassalador, beleza acesa por dentro e, ligada à música, liberta-me da desesperança.

Já imaginou: Gal ressurgindo ao vivo. Juro: penso nisso há semanas, meses, porque a cantora Filipe Catto dará show no Shiva Alt-Bar, domingo, dia 10, às 21h. E Filipe, sabemos, relê em ótimo disco canções tropicalistas. Sotaque indie-roqueiro acentuado. Pô, cara, coisa finíssima.

Filipe pende para expressividade. Dramatiza e, em razão disso, encanta. Encanta — ressaltemos — por meio de canto vultoso, terremoto que lhe confere textura elisreginiana. Mas, artista original, tampouco dispensa essa característica em “Belezas São Coisas Acesas por Dentro”, essa linda homenagem a Gal, ou no single “Chuva de Prata”, último lançamento.

Enquanto encadeio parágrafos e neles enfio palavras, de modo a imprimir sintaxe ritmada, ouço “Chuva de Prata”. O hit, lançado em elepê publicado por Gal Costa nos anos 1980, apresenta dessa vez harmonia ao estilo Lou Reed no genial “New York” (1989). Daí, talvez, venha a guitarra melódica, o solo sujo, o compasso-balada e o grave pulsante.

Na pujança do gogó, Filipe reconhece sua força, seu poder e sua arma. Desde pequena, quando o soltava, era aplaudida. O violão, espécie de escudo contra caretas, emitia notas musicais para blues-sofrência de Angela Ro Ro, mas também emoldurava Cazuza e sua ideologia pra viver. Filipe era eclética, já que tocava, se lhe pedissem, até Alanis Morrissete.

Reafirmando-se mulher transexual não-binária (versos de Gal, inclusive, lhe ajudaram), Filipe — de família musical — trocou a vida porto-alegrense pela nova-iorquina nos anos 2000. Lá, escreveu composições e, dentro das possibilidades, levantou alguma grana. Ao voltar para o Brasil, queria gravar suas canções, pois as pessoas lhe cobravam um disco.

Sempre foi ótima leitora, reconheçamos. Aplicada em Carlos Drummond de Andrade, deliciava-se com aventuras sexuais narradas na obra de Hilda Hilst. Logo depois, cultivando em si espírito inquieto da rebeldia, travou determinante contato lítero-musical: Patti Smith. A poeta, ligada ao punk, fala da vida. E aquilo, Jesus santíssimo!, deixou Filipe impactada.

Até 2024, lançou obras excelentes, como “Saga”, de 2009. Deu passo além nos anos 2010, quando fizera o ótimo “Fôlego”, de 2011, em cujo blues “Johnny, Jack & Jameson” aludia a três marcas de uísque populares na etílica noite nova-iorquina. “Lábios de bourbon/ eu não tenho outro jeito a não ser beijá-los em retorno”, canta, em inglês, ao estilo Ro Ro.

Quatro anos depois, já voz importante de sua geração, Filipe repassou carreira no álbum ao vivo “Entre Cabelos, Olhos e Furacões”, gravado em São Paulo. Produzida no disco de 2011 por Dadi Carvalho (ex-A Cor do Cor e Barão Vermelho), a artista chegou ao meio da década passada em alta velocidade criativa. Colocou nas lojas, as poucas que ainda existiam e as virtuais, dois trabalhos impecáveis: “Tomada”, de 2015, e “Catto”, lançado em 2017.

Aos poucos — como se estivesse pedindo ao mundo licença pra mostrar sua arte —, caiu na estrada, excursionando pelo Brasil, por países latino-americanos, estados europeus e, sobretudo, territórios estadunidenses. Essa fase, aliás início da afirmação transexual, culminou no espetacular “O Nascimento de Vênus Tour”, lançado já nesta década.

Lágrimas

Hoje, sem precisar provar mais nada, Filipe me arranca lágrimas sinceras. Gal, sabemos, deixou obra canônica. Há subversão no encontro das duas. Talvez — não sei — seja pelo fato de entendermos as canções por outra perspectiva, no que, me apresso em dizer, não existe mal nenhum: a arte, afinal, se move. É organismo vivo combatendo estupidez generalizada.

Diferentes fases de Gal Costa são contempladas por Filipe. Todas, é bom que se diga, eletrificadas pela sua guitarra, como se ouve na versão suja mas sutil de uma distorcida “Lágrimas Negras” e na releitura roqueira e fascinante de uma “Vaca Profana”. Ninguém, muito menos Marina Sena, ninguém reatualizou o cancioneiro tropicalista dessa forma.

É contratenor eletrificado, é eletrificado o contratenor. O canto ou o estrondo do que, não devendo ser mostrado, todavia está ao alcance dos nossos sedentos ouvidos. Isso nos arrebata enquanto nos enlouquece, nos leva ao universo do The Velvet Underground, nos irrita porque intolerantes estão aí e, ao mesmo tempo, salva alguma coisa em nós.

Tal qual Reed e David Bowie, o que Filipe Catto faz no âmbito da cultura é exatamente mostrar aquilo a que não devemos olhar —razão pela qual mexe com estrutura da cidade, para citar “República”, do filósofo grego Platão. Que bom. Goiânia anda precisando ser chacoalhada. E ser chacoalhada pela voz de Filipe é sinônimo de que ainda estamos vivos.

FILIPE CATTO NO SHIVA

Domingo, 10, às 21h

Shiva-Alt Bar

Alameda das Rosas, 1371

Setor Oeste

A partir de R$ 40

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