Procuro meus óculos que fugiram de mim. Sem eles não vejo além do meu nariz; apalpo letras e palavras escondidas nas pisaduras feitas pelo trote da minha alma. Onde estarão os meus óculos de míope? Será que alguém guardou-os como se fossem seus? Sem serventia para outros; as lentes foram ajustadas para os meus olhos. E nelas estão as minhas digitais que aparecem quando expostas ao sol; impressas com a fisionomia dos meus dedos; pontas fraternas de saudação aos irmãos e amigos.
Tenho um jeito próprio à maioria da minha geração: o de confiar cegamente no outro.
Sou assim, com essa confiança de bobão da Lorinda. Já tive decepções com esse meu jeito babaca de levar a vida. Mas quem ousaria tirar a luz de um capricorniano que nasceu em janeiro, depois do solstício de verão? Por isso quero meus óculos de volta. Procuro por eles em todos os cantos. Não estão em nenhuma gaveta dos armários de casa ou da mesa de trabalho de onde dedilho esta crônica. Também não estão no carro. Já tirei até os tapetes onde eles poderiam se esconder. Talvez cansados da rotina de ver o meu rosto enrugando como jenipapo maduro a espera de um título do Vila Nova.
Quando usei óculos pela primeira vez fui ver um jogo de futebol no estádio Olímpico. Era um jogo do meu Tigrão da Vila. Foi emocionante distinguir, da arquibancada, a bola branca rolando e a camisa vermelha do meu time com o escudo tradicional. Antes, como num jogo de sombras, as figuras se mexiam caóticas. Eu imaginava que a minha fraca visão era por culpa do sol. Tolice culpar o sol pela escuridão.
De noite, em casa, Deus me pôs na rede para descansar; olhei para o céu. Vi o clarão da lua cheia com jeito de quarto – crescente por causa de um pterígio, hoje operado pelo Dr. Reginaldo Prata. Não consegui contar nenhuma estrela. Conformei-me, afinal não sou fiscal de estrelas. Voltei meu olhar para o livro que lia há duas semanas. De perto vejo bem. Li até tarde da noite. Deixei o livro de lado e cochilei. O cachorro vira-lata latiu; acordei ainda na rede e fui pra cama esperando o dia amanhecer nos meus olhos.
No dia seguinte acordei cedo. Na varanda, antes do café, peguei um pedaço de melancia; enterro a semente no canteiro de flores onze-horas. Uma haste de metal apareceu entre os ramos. Já havia sentido aquelas hastes entre os dedos; eram meus óculos. Lá estavam com ar de abandonados e infelizes, como são todos os óculos desprezados.
Apenas um par de óculos, mas guardam as impressões da vida através das lentes a refletir nas lembranças.
(Doracino Naves, jornalista, diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, www.raizesjornalismocultural.net, escreve aos sábados no DMRevista)