Publicado no jornal Folha do Sudoeste, Jataí, GO, O7/05/2003, Revista da Academia Goiana de Letras e no livro Escrito nos Jornais: tempo de aprendizagem (2007), de minha autoria, o texto epigrafado, a nosso juízo, continua merecendo publicação.
Num país onde a história do negro tem sido silenciada, ocultada e negada, ainda tendo a cor branca como atestado de boa conduta, não pode ser no mínimo estranho o esmaecimento da história das palavras dessa origem étnica, dentre elas o vocábulo “kalunga” que, apesar do seu inegável valor histórico e sua indiscutível riqueza semântico-filológica, é também vítima da discriminação, da repressão e da violência, às vezes, institucionalizadas e camufladas, mas permanentes e dolorosas, preservando hierarquias e racismos. Alem desses estigmas, sabemos não ser fácil escrever a história e significados da palavra epigrafada, vinda de povos e culturas bantos, com cerca de 500 línguas desse grupo faladas na África negra, fundamentadas em forte parentesco e milhares de raízes das quais várias vieram para o Brasil, entre elas o quicongo, o umbundo e o quimbundo que, pelo seu uso mais extenso e mais antigo no Brasil, é de onde vem o vocábulo “kalunga” e o seu homônimo no vernáculo, calunga.
Assim, não há dúvidas de que Kalunga, da língua africana kimbundo, de que também se derivam o quimbundo e o “calunga” do falar brasileiro, deixando a maior parte das palavras de origem africana no Brasil, tem sua origem histórica nas predominantes culturas bantas cujas línguas influenciaram decisivamente o idioma que se fala hoje no País, não sendo novidade, portanto, no cotidiano brasileiro, palavras como angu, angico, barafunda, bombo, bunda, caçamba, cachimbo, cacimba, cafundó, dendê, dengoso, embé, encabulo, fandango, fubá, gambá, gamboa, humbo, hungu, Iaiá, inquice, jaculelê, jongo, lambança, lero-lero, macumba, malandro, malungo, mocorongo, nana, nenê, óleo-de-liamba e de cambona, panda, pano, quilombo, quimbanda, ritumba, ranzinza, sabugo, sacana, senzala, tacho, tipóia, titica, umbanda, urucongo, vigongo, vovó-gonga, xandanga, xará, zabelê, zumbi e centenas de outras, ainda que, nesses brasis, uma das formas do racismo antinegro mais arraigada na alma brasileira continue sendo aquela que procura reduzir todas as línguas africanas à condição de “dialetos”.
Realmente, muito antes de se dicionarizar na língua portuguesa, ainda em Portugal (1881); de se transformar numa comunidade negra remanescente de quilombo no norte e nordeste do Estado de Goiás; de se tornar objeto de abordagens acadêmicas; experiência curricular universitária; centro de atenções da mídia eletrônica e preciosidade ecoturística, calunga já era uma palavra rica de significados incorporados à língua do povo brasileiro. Com a letra “k”, porem, de sua origem africana, era e continua uma palavra comum entre muitos daqueles povos, com os quais veio para o Brasil, sendo normal, por isso, que os próprios africanos fossem chamados assim, kalungas, um outro modo de dizer negros, quase sempre pejorativo, justificando os colonizadores portugueses considerarem todos negros inferiores, facilitando se entender por que a palavra calunga no Brasil – nome que davam aos,negros – passou a querer dizer também coisa pequena e insignificante, como o camundongo catita do Nordeste, também apelidado calunga.
Para os congos e angolas, por exemplo, os primeiros a serem trazidos para o Brasil como escravos, kalunga era uma palavra ligada à suas crenças religiosas e ao mundo dos ancestrais, pois era deles que vinha a força. Para eles, segunda Uma história do povo kalunga (coord Glória Moura, MEC, SEF, 2001), o mundo era representado como uma grande roda cortada ao meio, e em cada metade havia uma grande montanha (...) Numa metade da roda, o pico da montanha ficava virado para cima. Mas na oura metade a montanha estava invertida, de cabeça para baixo. De um lado da roda, a montanha de cima representava o mundo dos vivos. De outro, a montanha de ponta-cabeça representava o mundo dos mortos, terra dos ancestrais. As duas montanhas eram separadas por um grande rio no que eles chamavam de Kalunga. Por isso, para eles, Kalunga era o nome desse lugar de passagem, por onde os homens podiam entrar em contato com a força dos seus antepassados.
Talvez, por isso, é que Kalungangombe, na África, é considerado um deus angolense das profundezas do globo terrestre, conforme Olga Gudolle Cacciatore (Dicionário de cultos afro-brasileiros, 1977), naturalmente cultuado pelos escravos dessa procedência. Para Olga, Calunga-grande, passando pelo kinbundo, na origem africana, é mar, oceano. Calunga-pequeno, também de formação histórica kimbundo já é cemitério, morte, peste; enquanto calungas, no plural, é o conjunto ou falange de seres espirituais que vibram na linha de Iemanjá (água) e cujo chefe é a entidade-guia Calunguinho, da umbanda popular.
Já se vê, assim, que os africanos associavam a palavra Kalunga à morte e ao mundo dos mortos, um jeito muito diferente do nosso, vale dizer, da cultura ocidental, sobretudo de nossos dias, para a qual o cemitério – morada dos mortos – é um lugar triste e assustador, enquanto para os povos citados, kalunga era o que tornava uma pessoa ilustre e importante, porque mostrava que ela tinha incorporado em sua vida a força de seus antepassados, sendo assim que agiam os reis, que só governavam enquanto eram capazes de manter seu povo unido em torno dessa força comum dos antepassados. Por isso, no cortejo dos reis e rainhas dos maracatus, sempre foi obrigatória a presença da boneca que chamam calunga, como símbolo da realeza africana e do poder dos ancestrais, sendo, por isso, ainda, que apesar de todos os imperialismos, figurando como um dos piores o de George W. Busch, levando o terror e a miséria a todos os continentes, sem muito esforço, até agora se nota nas manifestações culturais dos afro-brasileiros, ou afro-decendentes da erudição acadêmica, a prestação de culto aos seus antepassados, manifestada de diferentes maneiras pelo Brasil afora, podendo ser destaque o que ainda acontece anualmente em o Auto do Quilombo ou Dança dos Quilombos, na Serra da Barriga, e cidade de União dos Palmares, em Alagoas, através de dança guerreira entre negros e caboclos.
No Dicionário Banto do Brasil (1993-95), de Nei, provavelmente a mais completa obra abordando a cultura banto no país, está bem visível a rica polissemia dessa palavra, já incorporada à fala brasileira através das línguas bantas citadas, especialmente a já referenciada e aportuguesa quinbundo, enriquecendo o nosso léxico e mostrando a evolução da história desse vocábulo memorável, intrigante e mágico. Na umbanda, é cada um dos integrantes da falange de seres espirituais que vibram na linha de Iemanjá. Boneco pequeno. Figuras humanas nos desenhos infantis. Camundongo. Pessoa de pouca estatura, principalmente por ser aleijada da coluna vertebral. Esboço da figura humana que os arquitetos fazem para dar idéia das dimensões da obra que projetam. Pargo, indivíduo preto. Ajudante de caminhão de carga. Falar banto da região do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, onde, no final de 1970, do século findo, eram listados em Patrocínio (MG), um vocabulário do “calunga”, assim como um outro da “língua do Cafundó”, em São Paulo, denunciando forte presença de étimos do grande grupo linguístico banto. Cada uma das duas bonecas que fazem parte do cortejo de maracatu. Mar. Ceu. Morte. Cada um dos habitantes da comunidade de Calungas, em Goiás.
(Martiniano J. Silva, advogado, escritor, membro do Movimento Negro unificado (MNU), IHG-GO, UBE-GO, AGI, mestre em história social pela UFG, articulista do DM ([email protected]. BR))