A decisão, numa certa tarde, em Salvador (BA), de aceitar a sugestão, vinda de um amigo, de se candidatar a Miss Bahia, iria ter profunda repercussão na vida da bela baiana, e nos eventos sociais da Bahia, do Brasil e, de certa maneira, também na América Latina.
Eis como a “ghost writer”, jornalista Isa Pessôa, descreveu aquele dia simbólico em que Martha Rocha desfilou em Long Beach.
“Numa manhã de sol e céu claríssimo, fomos chamadas para o grande desfile pelas ruas da cidade. Long Beach, que, como Cannes, Itaparica ou Búzios vive das alegrias do verão, estava em alvoroço. Eram quase oitenta misses, imagine, mulheres de todas as partes do mundo, com belezas tão diferentes, cores, cabelos, sorrisos e pernas, de países minúsculos e de cidades gigantes, mulheres tão várias e, naquela manhã, de alguma forma, ligadas pelo destino, juntas numa avenida à beira-mar dos Estados Unidos... Era mesmo uma festa. Havia um certo delírio no ar, uma alegria, expansão, daquelas capazes de contagiar as pessoas em qualquer circunstância, nos hotéis, nos bares, nas ruas. Nós subimos em carros abertos, cada miss num carro diferente. A gente ficava lá em cima, de pé num tipo de estandarte, como os destaques ficam em desfiles de carnaval no Rio. Os carros seguiram em caravana e as ruas ficaram cheias. Todo mundo aplaudindo e gritando das calçadas. Não fiquei nem um pouco intimidada com toda aquela história... O carro passava devagarinho, as pessoas gritavam: Brazil, Brazil! Foi emocionante. Naquela cidade tão longe, havia o mesmo cheiro de mar que eu era capaz de identificar à distância, e a mesma alegria nas ruas, quando as pessoas estão disponíveis para o prazer. Tinha certeza de que aquilo tudo que estava acontecendo era para acontecer: parecia um projeto de vida que tinha sido feito para mim. Destino, missão. E me sentia à vontade lá de cima do carro, sorrindo e acenando para a multidão. Os jornalistas brasileiros diziam que eu estava muito cotada nas bolsas de aposta que faziam nos hotéis, bares e restaurantes de Long Beach. Os jornais publicavam esse movimento diariamente, e meu nome começou a aparecer sempre em primeiro lugar. Fábio e João Martins contavam que os americanos não paravam de perguntar quem eu era, de onde eu vinha... Naqueles dias de verão, julho de 54, só se respirava o concurso, só se falava disso. Os turistas tinham invadido a cidade, e queriam ver as candidatas, tomando partido de uma ou outra miss.” (pág.71).
E mais adiante:
“Quatro dias antes da eliminatória do concurso, levaram todas as misses para um dos passeios mais esperados da nossa agenda: A visita aos estúdios da ‘Universal Pictures’. Era uma geração de moças que sonhava com Hollywood – não importa de que parte do mundo viesse –, e chegar perto dos grandes ídolos americanos era realizar fantasias e sonhos monumentais. Logo que chegamos ao estúdio, reparei que as misses transpiravam esse deslumbramento, e tratei de me conter. Os artistas esperavam nossa visita. Me lembro bem do Tarzan, Lex Baker, marido da famosa Lana Turner, do Rony Calhoun, da Maureen O´Hara, do Jeff Chandler e do Tony Curtis. As meninas suspiravam pelo Tony Curtis, mas decididamente não me encantei por ele. O Jeff Chandler não, era mais interessante, um homem forte, com aquele queixo quadrado, cabelos grisalhos. Homem com jeito de homem. Eu o conhecia dos filmes em que ele fazia o papel de índio, e logo começamos a rir e conversar. Ele demonstrou certo interesse por mim, me fez trejeitos, me agarrou pelo braço - e as moças olhando, muito admiradas com aquilo tudo. Me despedi dele só com um beijinho no rosto. De Jeff Chandler só quis mesmo trazer de volta, comigo, uma fotografia. (...) Chegou a hora. Uma noite quente, e milhares de pessoas no Auditorium de Long Beach. Era a grande final daquela longa festa, dias e dias de especulação que teriam o desfecho naquele desfile. As quinze semifinalistas desfilariam só de maiô desta vez. (...) Quando chegou a minha vez de falar para a plateia, resolvi esquecer o assunto-café, e agradecer a hospitalidade americana. Disse que tinha duas irmãs casadas com americanos, e que, de alguma forma, já havia criado laços com os Estados Unidos. Falei ainda que o povo do Brasil também adorava receber as pessoas, e que todos seriam muito bem-vindos em meu país. Foi rápido e simpático. Não estava nervosa, o inglês fluiu bem, e senti que a receptividade foi ótima. Havia mesmo um zunzunzun sempre que me chamavam para o palco, isso dava para perceber, e me deixava tranquila.” (pág.75).
Aquela vida de princesa começou a fenecer com o casamento. Por algumas singularidades. Em primeiro lugar, porque não se casaria no Brasil, o seu reino encantado. A pedido de seu noivo, Álvaro Piano, brasileiro de origem lusa, o enlace matrimonial dar-se-ia em Mar Del Prata, então local preferido por turistas do mundo inteiro, notadamente das Américas. Decidiu-se, também, que o casamento seria, inicialmente, somente no civil, ficando a cerimônia religiosa para um segundo momento A esta altura, o noivo já havia tomado conhecimento de que sua bela noiva, além disso, já estava grávida, circunstância que deixaria em polvorosa a família da noiva e seus amigos, que não poderiam, jamais, saber da gravidez incipiente. Tanto que,mais tarde, Martha diria, em tom de brincadeira, que o seu primogênito era uma criança gerada de oito (8) meses. Um outro fato que perturbaria o sossego da jovem nova família, foi que, durante a prolongada lua-de-mel, por vários países, seu jovem esposo meteu-se no jogo pela madrugada adentro, quando perdeu todo o dinheiro disponível para o mítico passeio. Eis a narrativa sintética: “Viajamos ( ) por quase três meses. Álvaro comprou um carro, e fizemos oito mil quilômetros pela Europa. Fomos à Feira de Sevilha, na Espanha; depois, seguimos para Paris – ainda hoje me lembro do hotel em que ficamos no Champs Elysées. Seguimos pela Bélgica, Itália, Áustria, Holanda, Alemanha e Suiça, até voltarmos para a França, pela Côte D’Azur.”(pág.132).
De volta a Mar Del Prata, Álvaro dividia seus dias entre a residência e Buenos Aires. Até que, num desses fatídicos fins de semana, em que o avião de Álvaro teve problema de aterriçar em Mar Del Prata, e retornou a Buenos Aires, Martha recebeu a notícia que jamais imaginou receber: O avião caiu no mar, e todos os passageiros morreram. Martha iria, agora, enfrentar a viuvez, com duas crianças de colo, e, por cima disso, morando no exterior.
Essa situação era insustentável, a solidão era um algoz diuturno. Chegou mesmo a ser vítima de tentativa de estupro pelo médico que a assistira no hospital em que se encontrava internada para uma cirurgia de apêndice, possivelmente desnecessária.
Com o trauma das viagens aéreas em razão do acidente que vitimou seu marido, no retorno de Buenos Aires para Mar Del Prata, Marta tomou o navio e singrou para Salvador, a terra natal, fonte de suas energias. Em contato com parentes e amigos, foi recobrando o ânimo de viver. Desse isolamento na sua província, tirou-a um convite para participar, no Rio de Janeiro, de um concurso de Miss, que ela não poderia recusar, até pelas agradáveis recordações de sua vida social, até aquele momento, na cidade maravilhosa.
Foi quando ocorreu o encontro com o Ronaldo – “alto, bonitão, simpático”, filho do presidente do IRB – Instituto de Resseguros do Brasil, uma referência no seio da sociedade carioca. “Ele me procurou algumas vezes até menos de um mês depois, viajou para a Bahia e insistiu para que saíssemos juntos. Convidei a Ruth Pacheco, uma amiga minha, para me fazer companhia, e fomos jantar em grupo. Não sabia nada dele, não tinha idéia de que era um homem rico, e me lembro de ter passado o dinheiro para Ruth por debaixo da mesa, pensando que ele talvez não pudesse pagar a conta sozinho...” (pág.154). Foi quando uma amiga de seu falecido esposo, Maria Helena Bulcão lhe ofereceu um apartamento em Ipanema, na Visconde de Pirajá para que usasse por algum tempo. Martha aceitou. Por essa época, um empresário paulista Oswaldo Vidigal, lhe faria, insistentemente, a corte, inclusive para que ela saísse com ele, o que ela sempre recusava, polidamente, pois se sentia envolvida por Ronaldo.
Martha terminou capitulado à corte de Ronaldo. Casar-se-ia por amor, como, mais tarde, diria, desta feita na Igreja da Candelária, tendo como celebrante o arcebispo Dom Helder Câmara, hoje beato, na rota da canonização, por decisão do Papa Francisco, tornando-se, assim, a senhora Maria Martha Xavier de Lima. A recepção para 2.500 convidados realizar-se-ia no Copacabana Pálace.
Já na lua-de-mel na Europa, Ronaldo tirou a máscara de bom moço, e começou a mostrar a verdadeira face. Além de deixá-la, sozinha, a maior parte da viagem, viriam as grosserias, a princípio maneiras e gestos; depois, até mesmo físico.
Pouco depois, na sua autobiografia, através da ‘ghost-writer’ Isa Pessôa, diria:
“Perdi com Ronaldo os melhores anos de minha vida. Disso agora tenho consciência absoluta. Mas por acreditar sempre que a relação podia mudar, insisti. Investi”. (pág.166).
A relação degringolaria, dia a dia, mês a mês. Até que viria o desquite, proposto por Martha, tendo como advogado Nélson Carneiro, amigo da família, que passaria à história das instituições jurídicas, como o pater do divórcio, a que se associaria o notável senador Acioly Filho, do Paraná, meu saudoso amigo. Mas o desquite não seria suficiente para livrá-la de toda sorte de sofrimentos. Não satisfeito com as múltiplas agressões, e humilhações que lhe infligiu, Ronaldo conseguiu tirar de Martha a companhia de seus três filhos, sendo dois do primeiro casamento, ambos masculinos, e uma filha de seu infeliz conúbio com Martha, a mais famosa mulher que emergiu do anonimato para a glória das passarelas e o glamour dos salões aristocráticos.
Eis, em síntese, como alguém que chegou ao Olimpo da glorificação, cai no precipício de uma vida infernal.
(Licínio Barbosa, advogado criminalista, professor emérito da UFG, professor titular da PUC-Goiás, membro titular do IAB-Instituto dos Advogados Brasileiros-Rio/RJ, e do IHGG-Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, membro efetivo da Academia Goiana de Letras, Cadeira 35 - E-mail [email protected])