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OPINIÃO

O martírio das mães prisioneiras em uma sociedade desumana

A mãe observa, atenta e contemplativa, cada gesto de seu bebê, acolhendo-o no aconchego dos seus braços, amamentando-o com o leite da vida e do amor. Há uma longa troca de olhares, em um profundo silêncio que, de tão eloquente, dispensa as palavras. A natureza, a divindade, a criação, o milagre da vida, tudo isso parece manifestar-se intensa e verdadeiramente. É a vida que teima em seguir, naquela simbiose, naquela troca recíproca de amor e doação. Afinal, que gesto poderia ser maior que o amor expressado no ato de amamentar, produzindo o milagroso alimento no próprio corpo, assegurando a vida? O ato de amamentar constitui-se na mais extraordinária maravilha da criação e, mais que alimento para o corpo, é a sublimação do amor, do incondicional amor.

A criança, entretanto, está prestes a completar seis meses de vida e a mãe que o amamenta é uma presidiária. Há uma inadiável e fatal ruptura que se prenuncia. A natureza, o amor, o curso natural da vida, está na iminência de sofrer um penoso e pungente golpe. O Estado, com seu cruel sistema punitivo, implacavelmente se apropriará do fruto daquele corpo aprisionado como mera extensão daquilo que lhe pertence, como se tratasse de um simples objeto, incômodo e oneroso. Todo o vínculo afetivo estabelecido com o ato de amamentar, com a troca de olhares, com a entrega plena e incondicional entre mãe e filho, será abruptamente interrompido. Ambos serão separados para sempre em nome de uma lógica perversa estabelecida pelo poder punitivo estatal, onde os fins justificam os meios.

As normas penais priorizam o castigo, o sofrimento, em detrimento de valores e sentimentos maiores, como o amor e a vida. Esse inexorável paradoxo mostra-se insensível e apático aos clamores e às dores expressadas nas lágrimas que jorram dos olhos de mãe e filho, na forçada separação que os dilacera.

A lei brasileira prevê que as presidiárias podem permanecer com seu filho no período de amamentação, previsto em seis meses. Após esse tempo a criança deve ser encaminhada aos cuidados de parentes, desde que possuam estrutura social e familiar apropriadas ou, na ausência destes, o Estado dela se apropriará, disponibilizando-a para adoção. Essa realidade cruel revela o quanto a sociedade, através de suas instituições, encontra-se distante das aspirações civilizatórias que tanto teoriza. É certo que essa situação é controvertida, por implicar pontos de vistas e conceitos distintos. Se, por um lado, a mulher presa tem o direito de permanecer na companhia do seu filho, dando-lhe os cuidados necessários, estabelecendo mutuamente uma relação de afeto, a construção de valores e da personalidade, há, por outro lado, a vedação legal segundo a qual a pena não deve passar da pessoa do condenado, ou seja, o Estado não pode manter uma criança aprisionada pelo fato de sua mãe ter sido condenada à prisão. De fato, não se pode imaginar uma criança nascer e crescer em um ambiente de cárcere, inserida em toda a promiscuidade existente e na absoluta inviabilidade de oferecer-lhe as condições mínimas de sociabilidade, além do inevitável dano moral e psicológico, em todos os atos e fases de sua vida.

Essa realidade cruel passa longe da atenção e da preocupação da sociedade. Esta, ao contrário, está sempre atenta e vigilante para cobrar mais crueldade e mais rigor no sentido de infligir ao preso o maior sofrimento e privação possíveis, como impedir-lhe o lazer, o acesso à informação, o fim de assistência familiar, como o auxílio reclusão, destinado à manutenção de sua família enquanto perdurar a prisão, uma forma de política criminal preventiva como meio de diminuição dos riscos e atenuação de flagelos sociais. As pessoas, com toda a sua maldade travestida de “senso de justiça”, estão interessadas apenas em saber se o infrator está sofrendo todas as agruras provocadas pela penitência, pela infringência do castigo imposto pelo Estado, com o seu monopólio do poder punitivo. Toda a real crueldade e insensibilidade existentes nos cárceres, enfaticamente em relação ao bestial e desumano ato de retirar uma criança de sua mãe, reflete, fielmente, a mentalidade e a índole de nossa sociedade. A memória histórica nos mostra que, em um passado não muito distante, os filhos de escravos não passavam de acessórios, uma forma de “crescimento patrimonial” do senhor de escravos. Atualmente, o Estado apropria-se não apenas do corpo de seus prisioneiros, mas também de sua honra, de sua dignidade e, no caso das mulheres prisioneiras, de sua própria condição humana. A militante política brasileira, Olga Benário, foi deportada pela justiça brasileira e entregue ao regime nazista alemão para ser executada na câmara de gás. Na prisão, deu à luz Anita Leocádia, que nasceu no Campo de Concentração de Barmimstrasse. Anita foi entregue à sua avó paterna, aos quatorze meses de idade, quando terminou a sua fase de amamentação.

A complexidade em relação às condições das mulheres presas e que têm filhos dentro das prisões, gera sentimentos controvertidos, principalmente porque, para a grande maioria da sociedade, o castigo pelo crime cometido é muito mais importante que a vida da criança e as peculiaridades decorrentes da condição materna. Para mudar essa concepção talvez seja preciso transcorrer um longo tempo, acreditando em uma mudança de mentalidade. Existem diversas iniciativas, tanto em âmbito interno quanto internacional, que lançam algumas sementes de esperança sobre as perspectivas de um sistema penal mais consentâneo com sentimentos como bondade, fraternidade, onde o amor possa prevalecer sobre o ódio e a indiferença. Instrumentos como as Regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras, as chamadas Regras de Bangkok, constituem em verdadeiras fontes formais legislativas e configuram-se em paradigmas para uma mudança de mentalidade que possam contribuir para a construção de um mundo melhor, possibilitando-nos a aprender com as lições da história para não repetirmos os mesmos erros.

(Manoel L. Bezerra Rocha, advogado criminalista [email protected])

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