O artigo epigrafado foi publicado com o título “As cotas raciais e o racismo cordial”. Acredito merecer republicação. As cotas raciais, além de vitória política, social e econômica, são um Direito Constitucional do segmento negro brasileiro, por decisão unânime do Supremo Tribunal Federal, do dia 26 de abril de 2012. Não raro, prosseguem assustando grande parte da sociedade, sobretudo as pessoas mais conservadoras, para não dizer de mente colonizada, sendo mesmo curioso porque não houve reação quando propostas para estudantes estrangeiros, mulheres na política, cineastas e portadores de deficiências em órgãos públicos. Repetindo Hélio Santos, um dos mais respeitáveis estudiosos da questão racial no Brasil,“as cotas de 100% para os brancos estão aí desde sempre e ninguém contesta”. Quer dizer: em um país onde gato preto continua surpreendendo e a fisionomia das pessoas ainda caracteriza algo de bom ou de mau, a cor branca não tem como não ser atestado de boa conduta, inferindo poder ratificar a narrativa acima. Aliás, desde que J. A. Antonil, em “Cultura e Opulência do Brasil” (1711), escreveu que o Brasil é “... um inferno para os negros, um purgatório para os brancos e um paraíso para os mulatos”, além de revelação surpreendente, evidenciando a nossa confusa mistura de “raças”, preceptora de nossa identidade racial também confusa e polêmica, dificultando combate ao racismo, mostrou o negro no seu pior lugar, o inferno, de onde ainda não saiu completamente; o branco, num inesperado e esquisito purgatório, talvez influenciado por ideia euro-ocidental cristã, imaginada por Dante Alighieri, em A Divina Comédia, vislumbrando as delícias do céu; e o paraíso para os mulatos, onde nunca estiveram e não vão chegar, em razão do sentido pejorativo que carregam a partir da origem etimológica do nome, conforme explicam os bons dicionários, notando-se que só assim se melhoraria a “raça” no país e o negro se purificaria das suas maldades congênitas, inventadas contra ele pelos deuses do Olimpo e a cultura racista procedente de outras diásporas, dificílima de ser extirpada.
Já se vê que dessa embaraçosa e multicultural divisão de segmentos étnicos, o racismo no Brasil não poderia ser muito explícito como nos Estados Unidos e África do Sul, por exemplo, restando por ser mesmo mascarado, disfarçado, engenhoso, sutil e outros convenientes “apelidos”, tornando-se, por isso, muito mais difícil de ser visto, analisado e combatido, fato que se tornou ainda pior no país ao deixar de ser “científico” para ser definido “racismo cultural”, originário da própria confusão da mistura de “raças”, onde se disfarçou, deixando a impressão de que nem existia, como aconteceu por volta de 1933, através do emblemático e controverso conteúdo do livro “Casa Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre, onde a controvérsia seria somente de âmbito social e a virtude estaria na mistura de “raças”, fatos que seriam verdadeiros, se isso tivesse ocorrido de modo espontâneo, legítimo e democrático, nas relações sexuais e culturais entre brancos e negros sobremodo, onde a mulher negra, além de vítima de violentos estupros e horríveis abortos, até para não vê o filho nascer no status deprimente de escravo, da mãe, era obrigada a vê-lo nascer assim, por exigência legal, por impor princípio de direito da época o seguinte: “partus sequitur ventre – o parto segue o ventre”, assim podendo aumentar os escravos. Se não bastasse, nesse amálgama ou fusão de “raças”, em que pese seu aspecto meritório inquestionável, se esconderam e se disfarçaram muitas outras maldades, sendo o nosso racismo mascarado uma delas, sem esquecer a falsa “cordialidade brasileira”, de que fala livro clássico de Sérgio Buarque de Holanda, de onde vem racismo até “cordial”, abordado a seguir.
Notem que foi ainda na década citada, por intermédio do livro clássico “Raízes do Brasil” (1936), do consagrado Sérgio Buarque de Hollanda, que apareceu no Brasil a hipócrita ideia de que seríamos um povo cordial, daí a nossa cordialidade e afeto para com o negro, o índio, outros segmentos e até nações; diagnosticando também que foi nessa falsa cordialidade que se escondeu, dentre outras dissimulações, a “rede de relações privadas que comanda a cena pública do país”, como ocorre hoje em dia na celeuma das biografias, onde os biografados, confundindo interesse público com seu interesse de ordem privada, a bem dizer, são o “homem cordial” de que fala Buarque de Hollanda, “reivindicando para seus desejos” enganosos o amparo da lei, que não pode ampará-los, na hipótese, a anacrônica disposição legal do Código Civil de 2002 (art. 20), no qual a pretensão postulada, por notáveis que sejam as celebridades, não tem sustentação jurídica básica, por ferir direito constitucional anterior, previsto na Constituição de 1988 (incisos IX e X), onde a censura prévia é proibida, vendo-se, assim, que qualquer decisão a respeito, fundada em lei civil ordinária mencionada, mesmo que transitada em julgado (res judicata), não tem como não ser norma legal inconstitucional, configurando censura prévia, inadmissível. Como diria Heloisa Starling e Lília Moritz, em consistente ensaio intitulado “Medos privados em lugares públicos”, publicado à página 8, do Suplemento Literário Ilustríssima, do jornal Folha de São Paulo, de 3 de novembro do mês corrente, “Essa história é pública e ao público pertence”.
Como visto, de tão arguta, a discriminação no Brasil, econômica, racial, social, xenófoba etc. chega a ser “cordializada”, pra não repetir “cordial” e incoerente, sendo assim que o artigo 20 do Código Civil pode entrar em vigor, facilitando censura prévia proibida por Constituição Federal anterior; o “homem cordial” descrito por Buarque de Hollanda, ainda tendo a vida privada fazendo papel de nossa principal referência, como se isso, no dizer das autoras acima referidas, “...fosse sinal de maturidade democrática”; pudéssemos viver somente com uma “verdade”, uma versão; como se a verdade mais importante, segundo o filósofo Albert Camus, não fosse a última delas, coerente e de ordem pública; num país dividido em classes sociais de maioria desigual, injustiçada que, assim como o homem cordial, estão assombrando as biografias propaladas pela mídia, feitas com “fundamento” em lei civil ordinária insustentável, ofensivas, portanto, ao princípio da hierarquia das leis, defendidas por notáveis e reconhecidos talentos da Música Popular Brasileira, através do grupo cognominado “Procure Saber”, coletivo que defende autorização prévia para publicação de tais biografias, cujos biografados sempre mereceram o nosso maior carinho, não raro STF já lhes tenha imposto a força do Direito.
Curiosamente, noto que o “Procure Saber”, não está tão coeso, recua e se dispersa, talvez por perceber reação pública desfavorável e por defender pretensão insustentável em âmbito jurídico, moral e ético, consoante ouso comprovar com depoimentos de alguns deles, publicados em jornais. Gilberto Gil já “defende grupo contrário a biografias sem autorização”, jornal O Popular, Goiânia, Goiás, página 4, sábado, 9 do mês corrente. Caetano Veloso, em “Nós apanhamos, e ele vem de Rei”, em artigo publicado no jornal O Globo, Rio de janeiro, no qual se mostra irritado com Roberto Carlos, pela “mudança de tom” em relação ao grupo “Procure Saber”, que defende autorização prévia para biografias, do qual logo depois Roberto saiu; texto também publicado em “A semana foi assim”, do jornal O popular, referido, de 10 do mês em curso, página 10, do 1º Caderno. E se transcrevesse entrevista de Ruy Castro, a Rogério Borges, no jornal referenciado? “Só leio biografias não autorizadas”, ironizou. Se não bastasse, com manchetinha intrigante “Amigo de fé”, Elio Gaspari, me oferece texto, digno de encerrar o que ora escrevo, publicado à página 14 do jornal citado, ainda do dia 10 de novembro em curso, do 1º caderno.
“Roberto Carlos é um ‘amigo de fé, irmão camarada’. Bloqueou a publicação de dois livros e tentou barrar um trabalho acadêmico sobre a jovem guarda. Quando seu projeto de censura virou vinagre, pulou de barco, deixando Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil na frigideira”.
(Martiniano J. Silva, advogado, escritor, membro do Movimento Negro Unificado (MNU), da Academia Goiana de Letras e Mineirense de Letras e Artes, IHG-GO, UBE-GO, mestre em história social pela UFG, professor universitário, articulista do DM - [email protected])