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OPINIÃO

Viagem episódica à Terra Ronca

Foi em 1976. Passamos por Brasília. No Plano Piloto, vê-se logo ao leste o Teatro Municipal, como uma pirâmide truncada que emerge da terra. Pelo lado do nascente, na Praça dos Três Poderes, a majestosa Catedral de vulto gótico circundada pelas estátuas esguias dos Evangelistas. Mais perto, o edifício do Congresso Nacional: suas cúpulas como duas bandas de laranjas invertidas. Depois, os Ministérios, o Palácio do Itamaraty. Numa linha líquida ao longe, o grande Lago, azulado pela distância. A bandeira nacional sempre hasteada, que “a brisa do Brasil beija e balança”, como diria Castro Alves, nosso poeta condoreiro que emprestou sua poesia à causa da libertação dos escravos. Alta, bem alta, ao poente, vê-se a gigantesca torre da Embratel: símbolo da comunicação moderna e da integração nacional (réplica modesta da Torre Eiffel de Paris). Cidade espacial, Brasília parece flutuar envolta em solidão. Configuração de um sonho de concreto.

A partir de Brasília, o roteiro inclui passagem por Formosa, Alvorada/Simolândia e Posse. A partir de Posse, a estrada torna-se exótica. De Posse a São Domingos, a viagem toma outro aspecto. Já não se está mais na rodovia Brasília-Fortaleza, que entra pela Bahia afora, área de cerrado com plantação de soja. Peregrinei por aí fazendo um levantamento sobre a romaria da Lapa do Bom Jesus na Terra Ronca, município de São Domingos, a qual se realiza no dia seis de agosto, na mesma data da romaria do Bom Jesus da Lapa na Bahia. Chegamos à caverna de Terra Ronca alta madrugada. A gruta estava silenciosa. Fechada pela escuridão. A lua era uma tocha de fogo em cima da serra. Saboreamos ainda umas pontas de camas feitas de palhas de buriti estendidas sobre o chão. Um galo cantou abrindo solenemente a manhã da romaria. Daí a pouco era o espocar de foguetes e bombas e o vozerio dos romeiros e camelôs, já armando suas barracas, para dar início ao intenso movimento comercial que anima a romaria.

Comportamento social e religioso


Cerca de três mil romeiros comparecem anualmente à Terra Ronca, vindos da capital federal e dos estados vizinhos. A romaria se constitui num ponto de encontro não só de religiosos, mas também de comerciantes, curiosos, artistas de circo, tocadores de sanfona, cantadores de moda de viola, não contando moradores do lugar que se confundem com a multidão de forasteiros.

Nesses dias, os romeiros autóctones mais se divertem do que rezam. Aproveitam para quebrar a monotonia da eterna solidão morando à beira da gruta. Sabem que têm o ano inteiro para estar em contato com o Bom Jesus da Lapa. Em qualquer circunstância difícil, contam com o beneplácito da providência divina. Deixam transparecer o santo orgulho de quem mora ali perto do céu, embora um céu rústico feito de pedra. Onde se penitencia e se sofre, mas se pressente a presença de um deus íntimo e familiar. Os homens esguios e ascéticos da Terra Ronca aparentam realmente um jeito de santos ou sofredores.

De mistura com as funções religiosas, o caráter comercial vem tomando conta da romaria. Vendedores humildes ou biscateiros são substituídos cada ano por comerciantes de produtos industrializados. Não se encontram mais peças artesanais fabricadas na própria região. Grandes caminhões carregados de mercadorias tomam o lugar de velhos cargueiros e carros de bois. Ainda por cima, funcionários do fisco multam pobres biscateiros com suas bugigangas, que acaso não souberam legalizar sua situação comercial. Por sua vez, os tocadores de viola, cantadores de moda, estão perdendo sua vez para os conjuntos musicais de boates, os alto-falantes de circo, que poluem as noites estreladas da gruta e dão um caráter de profanidade à romaria. Roubam o sentido religioso dessa peregrinação que, ao que parece, só tem ainda significado para os humildes pagadores de promessas.

Emílio Vieira 3

Enquanto o padre tenta recuperar ovelhas para o rebanho de Cristo, os políticos buscam na romaria a oportunidade de conquistarem novos eleitores. O povo  tem ali dois motivos centrais de diversões: o rio, durante o dia, e o pagode, à noite. Misturam-se vozes e sons eletrônicos, foguetes, gritos e tiros, num barulho suficiente para abafar as mágoas dos homens em contraste com o silêncio puro e indiferente da natureza.

No rio, mulheres e homens se banham nus, só separados pelos limites morais que os impedem de qualquer transgressão. Os meninos ficam junto com as mulheres, mas as meninas não se misturam com os homens. Dentro dágua e debaixo do arco-íris, mocinhas ingênuas se banham com os seios expostos, debutando a beleza indígena. A promiscuidade dá a impressão de que se está num mundo em que o homem não tinha ainda conhecimento da proibição das frutas do paraíso.

Em vista do enorme contingente humano e da heterogeneidade social dos romeiros, não é de se estranhar que surjam atritos e brigas que justifiquem uma ação de policiamento na romaria, a fim de se garantir a ordem social. Mas o povo do lugar é pacato e ordeiro. Em caso de algum desentendimento, basta a intervenção do padre ou de um amigo para que as discussões terminem num abraço. O padre acredita na fé ingênua dos romeiros. Seu rebanho ali comparece no intuito de prestar um tributo de amor a Deus. Mas o comportamento religioso dos visitantes limita-se a colocar uma esmola para o santo, queimar uma vela ao pé do altar, cumprir uma promessa e soltar alguns fogos na boca da gruta. Por qualquer desses atos, o devoto julga-se purificado. Aí estará tudo arrumado com o Bom Jesus, ou qualquer outro santo da devoção popular, não precisando ser exatamente aquele que morreu crucificado.

Como surgiu a romaria


Segundo o padre Geraldo Chiarini, que entrevistei à época, o incremento da romaria de Terra Ronca deve-se, primeiramente ao padre José Oliveras, que por muito tempo fora vigário de São Domingos. Vendo o desejo natural do povo, propenso a se apegar a Deus por meio de promessas, idealizou uma desobriga que passou a ser realizada anualmente na gruta, considerando o excelente ponto para se promover a concentração popular e facilitar, assim, os serviços de assistência religiosa. Tal prática foi seguida por outro vigário, o padre espanhol Luiz Olabarieta, que mandou fincar um cruzeiro à frente da gruta, segundo consta, feito pelo carpinteiro Antero Galo (mas dizem que quem faz a cruz não finca), e com ajuda dos moradores locais o padre abriu estrada de rodagem para facilitar o acesso ao lugar da peregrinação.

Na opinião popular, o surgimento da romaria é fato espontâneo, apenas reconhecido pelos padres, que oficializaram o ponto levando o santo para assumir a tutela do povo. O padre Luiz promoveu a procissão de traslado da imagem do Bom Jesus para a gruta, com auxílio dos senhores Raimundo Rodrigues, João Moreira dos Santos, Lázaro Rodrigues da Silva e outros que até o ano de 1973, estavam vivos e sãos, afirma o mesmo Lázaro.

A gruta é palco de histórias fantásticas e muitas lendas correm sobre a origem da romaria. Dizem que muito antigamente morava um homem bem de frente da caverna. E numa trilhazinha que levava à beira dágua, dois menininhos brincavam todo dia de tardinha, e num desses momentos em que um deles estava vadiando com um cavalinho de pau, o outro desapareceu de repente: era o menino Jesus. Desse dia em diante passaram a ouvir vozes de um rezador dentro da gruta, e o fato começou a chamar a atenção dos moradores: eis a razão de ser da romaria.

Histórias de caçadores


Os principais responsáveis pelo reconhecimento da gruta e, consequentemente, pela divulgação da romaria, foram os caçadores de onça que com suas histórias despertavam curiosidade causando motivação para que o povo fosse conhecer a Terra Ronca. Um homem histórico do lugar teria sido o caçador Calixto José Valente, natural de São Domingos e filho de Maximiano Valente, que segundo seu Manuel Peregrino, era possuidor do registro paroquial das terras onde está situada a gruta. Calixto chamava a atenção para a gruta com suas histórias de maravilhas e caçadas impressionantes. Por sinal era irmão de outro famoso caçador, Augusto José Valente, da cidade de Posse.

Mas considerado mesmo caçador-mestre da Terra Ronca, era o finado Zacarias, segundo conta o dominicano Olavo de Melo, verdadeiro domador de onça que é lembrado como um mito na região, homem de extraordinária coragem e que sabia mandinga capaz de quebrar a força de qualquer animal. Certa vez, foram fazer uma caçada Zacarias e mais dois companheiros, encurralando uma onça acuada na dita gruta de Terra Ronca. A bichana, com um tapa e um sopro, apagou logo a lanterna do primeiro caçador que, à frente dos outros e no escuro, enfiou a mão na boca da onça, ficando sem o braço direito. O segundo caçador, que tentou correr, foi retalhado pelas costas e aí mesmo devorado pelo animal. Zacarias aproximou-se da fera apalpando-a no escuro, passou-lhe a mão da cabeça ao rabo e vice-versa, até colocar a boca da espingarda dentro da boca da onça. Histórias de caçadores.

A carta do Padre Benedicto


O primeiro documento conhecido a respeito da maravilhosa gruta de Terra Ronca é uma carta do padre Benedicto Ascarate, publicada em segunda mão pela revista Informação Goiana, em 1933, então dirigida pelo historiador Henrique Silva. Diz a revista que jornais de São Paulo haviam divulgado uma interessante correspondência de Goiás, fazendo referência à descoberta de várias grutas. O padre Benedicto Ascarate, que acabava de regressar de Goiás para a capital paulista, endereçou a um dos jornais locais a referida carta, com curiosos detalhes que veremos no texto logo abaixo reproduzido. Em nota do editor, frisa-se que essa descoberta vinha corroborar o que o diretor da revista (no caso Henrique Silva) já afirmava no seu estudo “Contribuição para a geografia e zoologia do Brasil.”

Sr. Redator.

Não sem interesse, li no seu jornal o artigo “Uma impressionante descoberta de três sertanistas goianos”.

Acabo de chegar do sertão de Goiás, tendo percorrido os municípios de São José do Tocantins, Traíras, Pilar, Crixás, e ultimamente estive, no desempenho da nobre e evangelizadora missão de sacerdote, nas paróquias de São Domingos, Posse, Flores de Goiás, Sítio da Abadia e outras, todas encravadas na prelazia de São José do Tocantins.

As lapas e grutas, nessas regiões, são fantásticas, e prendem a atenção do turista investigador.

O artigo mencionado referia-se a diversas grutas: porém, como testemunha de vista, devo dizer que todas elas, inclusive as do Mato Seco (no Tocantins), não têm a menor comparação com a lapa de Terra Ronca, verdadeira maravilha no gênero de grutas artísticas e grandiosas.

Creio que não haverá, no Brasil, nesta terra grandiosa de tantas maravilhas, infelizmente esquecidas e abandonadas, lapa que se possa comparar com a gruta de Terra Ronca, no município de São Domingos, a 10 léguas da cidade e a 10 de Posse. Se, na lapa de Mato Seco, segundo a sua notícia, podem ser abrigados nada menos de 150 bois, afirmo se receio de errar, que na de Terra Ronca podem ser abrigados mais de 2.000!

Calculo que, na sua entrada, ela possua 50 a 60 metros de altura por uns 35 a 40 de largura. A luz do dia é percebida a cerca de 200 metros de profundidade, e a exploração da lapa já alcançou cerca de 2.000 metros. O que sobremodo encanta a gruta é o rio que por dentro dela passa. As suas águas, cristalinas, sussurram agradavelmente. Este rio, que tem o nome da Lapa, nasce na Serra Geral, que divide Goiás da Bahia.

As estalactites  e estalagmites que adornam o interior da gruta são gigantescas e o seu conjunto dá a idéia de uma enorme catedral gótica dos tempos medievais. Encontra-se na lapa grande quantidade de salitre, que os naturais aproveitam para o fabrico de fogos de artifício.

Outras grutas existem no município de São Domingos, e Posse, como as lapas da Angélica e do Bomba, todas porém, de muito menor importância. Terra Ronca é uma maravilha que deveria ser por todos conhecida.

Para terminar devo acrescentar que hoje a lapa de Terra Ronca está convertida em lugar de romaria, onde se venera a imagem de Nosso Senhor Crucificado, que relembra, e muito bem, o mesmo culto da Lapa do Bom Jesus, na Bahia.

(Este artigo, revisado pelo autor, foi publicado no livro Intersecção Goiás-Bahia, de Emílio Vieira, Goiânia, Kelps, 2015, 2ª edição, a ser lançado em breve).

(Emílio Vieira, professor universitário, advogado e escritor, membro da Academia Goiana de Letras, da União Brasileira de Escritores de Goiás e da Associação Goiana de Imprensa - E-mail: [email protected])

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