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OPINIÃO

Ferida aberta de uma sociedade exposta

Você ainda se lembra de quem foi quando jovem e livre? A reflexão remete a uma das atemporais frases de Bob Dylan: “A resposta meu amigo está solta ao vento, a resposta está voando e... ao vento.”
Antropológico, o homem é história montada em matéria perene que pulsa em sangue, carne e ossos. Galgados alguns direitos de acesso (capitalistas), ainda no século XVIII, o sujeito passa a conviver, coletiva e reconhecidamente, entre homens (no plural), atores sociais que, a partir daí, pintam a tela imediatista do consumo de massa o que o transforma e recria, também, na forma de mercadoria, - artigo de luxo ou lixo a serviço do luxo - que fundamenta uma sociedade de violência banalizada, pobre em valores, desfigurada no funil do conta-gotas da concentração econômica. De tempos em tempos, detona expressões da questão social ligadas à agressão das dignidades, na velocidade e medida exatas da emancipação escrita em folhas pré-datadas de um talão de cheques que inclui, vende e revende os direitos (sem fundos).
O Brasil trespassa o recorte sócio-histórico e econômico no qual a sociedade, pós-modernizada, endividada e fútil, covarde e mentirosa, de ideologia virtual a qual é capaz de valorizar um milhão de assexuados anônimos e crucificar a pessoa a qual ‘não tendo alimento, em casa, come fora’. As questões existenciais vestem-se em alma e mente – que mentem – extrapolam a razão perdida. O que mais dói numa consciência vendida é o barulho enlouquecedor do silêncio da verdade, o fantasma sem brilho que a mira no espelho das vaidades quebradas, o gozo fingido em gemidos sádicos pagos por hora, a mala não declarada, o terno que se esconde na gravata. De acordo com Ramon: “Persiste, no Brasil, um hiato entre o Estado e a sociedade. Inoportuna subversão do milenar conceito aristotélico de que o poder público deva dedicar-se a prover as necessidades desse indivíduo político chamado ser humano. O Estado, obsoleto, não se coaduna com a realidade institucional do Brasil e as exigências competitivas da economia contemporânea” (in Iasi, v. 9, 2009, p. 33).
O aceite corruptível, num papel qualquer, junta peças de um quebra cabeças – cujo sinônimo não se avista no horizonte das liberdades – e, mesmo assim, destina às jaulas da coerção (delimitada a grades de ferro), pobres leões (des)humanos que superlotam cubículos. Segundo Foucault: “A proporção entre a pena e a qualidade do delito é determinada pela influência que o pacto violado tem sobre a ordem social” (1977, p.89). A (des)razão humana é ferida exposta no fenômeno (des)humano que permite ao organismo não sentir dor, a conhecida síndrome de Riley Day. Enquanto o tempo corre, suspeitos ricos e poderosos esperam por CPI’s televisivas dirigindo carros importados.
Ao trazer esta expressão da questão social para o quintal do Brasil, o sociólogo Frei Beto diagnostica o fenômeno: “O erro do Lula foi ter facilitado o acesso do povo a bens pessoais, e não a bens sociais – o contrário do que fez a Europa, no começo do século XX, que primeiro deu acesso a educação, moradia, transporte e saúde, para então as pessoas chegarem aos bens pessoais. Aqui, não. Você vai a uma favela e as pessoas têm TV a cores, fogão, geladeira, micro-ondas (graças à desoneração da linha branca), celular, computador e até um carrinho no pé do morro, mas estão morando na favela, não têm saneamento, educação de qualidade. É um governo que fez a inclusão econômica na base do consumismo e não fez inclusão política” (Revista Cult, 2016, fevereiro).
A quem, e quando, deve-se debitar a falácia do Estado? A (des)organização da gestão burocrática jurisdiciona as mais variadas manifestações sociais, pune o sujeito trabalhador sem face. Políticas públicas incompetentes não enfrentam a da (des)ordem socioeconômica. Desaparece a inclusão social, questão conjuntural que encontra resposta em letra da banda Titãs: “Quem quer manter a ordem, quem quer criar desordem, não sei se existe mais justiça, nem quando é pelas próprias mãos, o que mais pode acontecer num País pobre e miserável?”
A nível estadual, a questão das substâncias ilegais é a bola da vez e dilema da (in)segurança pública. A droga, culpabilizada, condena a tudo e a todos, especialmente os mais carentes, habitantes das bordas da Capital, fato exposto nos números alarmantes da violência desenfreada das cidades do Estado e País afora, veementemente negada. As rodas de conversa e discursos vazios santificam ou delegam aos demônios o uso e abuso de substâncias – questão de saúde. Acabar com a droga não passa de uma droga de proposição. Assunto de tamanha proporção abarca a penalização dos direitos ao consumo, invade e nega valores culturais, desvirtua e tendência a denunciar as verdadeiras doenças do trabalhador, e esconde uma grande verdade: a que mais dói é a do desemprego, ela corrói a alma.
A questão – de saúde – passa ainda pelas ONG's regulamentadas por deuses de barro, denunciadas na mídia, e fomenta o câmbio negro financiado pelo diabo. A droga ou substância denota a Era das Cavernas, que ainda persiste. Hoje, o Homem de Neandertal posta foto, usa, abusa, representa, distribui, vende e revende drogas legais e ilícitas. A diferença é a ferramenta alienante, pós-moderna, fetiche de consumo: o iPhone que lhe individualiza e aliena, rouba a mente e ocupa suas mãos.
Aproximam-se novas eleições em meio ao laranjal do continuísmo. Velhos ranzinzas e ricos; desmantelamento da máquina administrativa; uma meia dúzia de anões a serviço do voto vampiresco e ultrapassado das políticas de primeiras-damas: encaminhamento, pedido, apadrinhamento, perpetuação das iniquidades. Movida a parcos salários, a subjugação das inteligências enfurna embaixo do poder patrimonial o poder de fato, enquanto Foucault questiona: “Para quem o senhor trabalha? Quer dizer, já que o senhor não é patrão, tem que ser servidor, de alguma forma; o que importa não é a satisfação do indivíduo, mas a ordem a ser mantida.” (1987, 5a ed. p. 256)
Na vila desgovernada, candidatos da Saramandaia política sobressaem-se aos atrapalhados e honestos Três Patetas. Tem rei que sonha se tornar primeira-dama; quem tem juízo foge do delegado enquanto o pastor cético e afogado na crise dos dízimos, conclama santos e diabos antes que se venda ou entregue a alma, numa mala, ao capeta. Já o padre, escravo dos segredos, não consegue se esconder sob a batina, em meio a pesadelos que pululam da (in)consciência, e indaga: – Espelho, espelho meu, existe ou cabe no confessionário algum marxista ou só existe espaço para Narciso que não seja ateu? Engolido pelo sistema econômico de exploração voraz, tensa, de acordo com Harvey, ‘que delimitam uma condição pós-moderna’, o proletário segue trabalhador suado que se equilibra na corda bamba de uma sociedade tensionada, de um lado, pela violência banalizada e, de outro, pela coerção do Estado.
Passiva a tudo e a todos, cobrada em impostos, sobretaxas e, presa em casa, uma coletividade amedrontada espreita por entre as grades a banalização da vida nas ruas. Considerada a ideia da carta, por parte do Estado, há que se convocar Amado Batista, afinal, longe de administrar a (in)segurança, em Goiás, A Carta, foi o cantor quem lançou primeiro.
E o pulso... ainda pulsa!

(Antônio Lopes, assistente social; mestrando em Serviço Social/PUC-Goiás; pós-graduando em Filosofia/Nova Acrópole; aluno ouvinte em Direitos Humanos/UFG)

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