Muwaji Suruwahá e sua filha: luta pela sobrevivência e direito à vida
Um projeto de lei se arrasta há tempos no Congresso Nacional e carrega imensa polêmica que pode ser sintetizada em duas perguntas desafiadoras: é correto o Estado brasileiro permitir que crianças indígenas deficientes ou idosos possam ser mortos ou enterrados vivos em suas tribos caso assim seja esse o hábito da comunidade? Ou ao contrário: é lícito a cada tribo decidir o valor dado à vida a partir dois seus costumes?
A questão se arrasta desde 2007 quando um projeto de lei foi apresentado para tentar impedir a prática. Tal regulamentação não passaria pela sistemática do Código Penal, que pune crimes como o infanticídio. Com a aprovação da lei, ocorreria, de fato, uma interferência direta nas tribos através dos atos da Fundação Nacional do Índio (Funai), para que o órgão impeça a prática. No lugar da retaliação penal, logo, seriam realizados atos administrativos.
A primeira questão que persiste é a absoluta falta de números referentes a quantidade de mortes indígenas neste sistema de infanticídio. Os homicídios realmente acontecem. E um caso ao menos se tornou popular quando a índia Muwaji decidiu abandonar sua aldeia para salvar a filha.
Muwaji Suruwahá teve uma criança com paralisia cerebral. Contada no documentário "Hakani", docudrama (baseado em fatos reais) do cineasta norte-americano David Cunningham, a história de Muwaji e de sua filha comoveu inúmeras pessoas no mundo. Moradora de Brasília, na Casa das Nações, entidade mantida pela ONG Atini, Muwaji jamais voltou para sua tribo após o episódio. Com dificuldade para se expressar em português, a mãe é o exemplo de violência cultural, já que acabou afastada de sua comunidade por conta do desejo em manter a vida da filha.
Apesar de existirem projetos de lei para impedir a prática antes mesmo da produção do documentário, o sucesso do filme “Hakani” motivou outras iniciativas. Dessa vez o projeto 1057/07, do deputado federal Marcos Rogério (PDT-RO), teve mais impulso e já percorreu com êxito as comissões legislativas. A norma visa impedir indiretamente a prática e deve ser votada em plenário neste primeiro semestre.
Para a lei, os órgãos responsáveis pela política indigenista precisam adotar mecanismos de proteção que possibilitem a manutenção da vida das crianças, adolescentes, mulheres, pessoas com deficiência e idosos indígenas, independente do estado de saúde.
O deputado federal João Campos (PRB) afirma que a inovação legislativa ocorreria com a inclusão do artigo 54-A na Lei 6.001/73 (Estatuto do Índio). “Com a nova redação, a norma oferecerá mecanismos que garantam proteção à vida e à integridade física e psíquica das crianças, adolescentes e vulneráveis indígenas”.
A proposta suscita polêmicas principalmente por conta da atitude contrária da Funai. A instituição que trata administrativamente das populações indígenas apresentou uma série de notas em que lamenta a condução das votações no Congresso Nacional sem que se compreenda a dinâmica da vida dos índios.
Em 2016, a Funai insinuou que propostas como a “Lei Muwaji” tenham como intenção criminalizar práticas indígenas: “O Projeto de Lei desconsidera a falta de dados concretos sobre a suposta prática de "infanticídio", uma vez que não existem dados coletados com rigor e em número suficiente para afirmar que essa seja uma ação frequente e costumeira por parte de povos indígenas, como se tem alardeado. A alegação dessa suposta prática serve, muitas vezes, como tentativa de criminalização e demonstração de preconceito contra os povos indígenas, e também como justificativa para penalizar servidores públicos que atuam em áreas indígenas”.
Índios consultados pelo Diário da Manhã afirmam que carregar um deficiente nas costas dentro da floresta é um sofrimento para todos e tal fato justifica o pensamento das tribos. Para eles, antes de cultura, a morte dos doentes representa amor ao filho doente. Mas esta teoria não explica a morte de gêmeos e filhos de relações extraconjugais, por exemplo.
Em entrevista ao DM, o parlamentar autor do projeto afirma que a discussão não diz respeito às características culturais dos índios. Ele afirma, inclusive, que o modelo legal, a criação da estrutura da norma, demonstra cuidado para não ferir as tribos. Mas reitera que é preciso realizar ampla consideração dos direitos humanos. “Até onde sei, direitos humanos devem ser direito de todos. Uma cultura não pode violar o direito inalienável e imprescritível da vida”, diz Marcos Rogério. Para ele, abrir exceções e janelas de direitos humanos poderá, então, justificar guerras, disputas sanguinárias entre tribos e execuções religiosas, como as que ocorrem com os cristãos. “Índios são seres humanos. Não parece uma conclusão óbvia?”.
João Campos defende um cotejamento entre os direitos culturais e humanos no sentido de que não ocorra nenhum choque entre eles, apesar do direito à vida ser um dos mais protegidos no mundo. “Na Câmara dos Deputados, o entendimento dominante diz que o direito à diversidade cultural deve ser limitado quando se choca com o direito à vida”, diz o parlamentar.
João Campos afirma que antes que sejam externados argumentos de que a norma tenha vocação etnocentrista e seja desrespeitosa com comunidades indígenas, é preciso “lembrar que se exige apenas maior atuação dos órgãos de estado para fazer valer os direitos de cada membro das comunidades”.
Em sua página na internet, o deputado federal Edmilson Rodrigues (Psol-PA) se posiciona contra a proposta, pois ela fere a regra que garante ao índio sua “identidade cultural”.
Índios defendem autonomia das aldeias
O DM conversou com três índios de nações xavantes e todos negam a existência da prática de infanticídio em suas aldeias. Todavia, eles também se revelam contrários a qualquer forma de interferência do Estado em suas regulações “internas”. "Em nossa aldeia, a gente pega a criança e leva para a cidade e busca tratar. Não doamos também", diz Ricardo Aptsira, da aldeia São Marcos, localizada em Barra do Garças.
Outros indígenas defendem a autonomia das tribos. "Estamos carentes de crianças. Agora, nunca nasceu desta maneira em nossa aldeia. Não concordo quando tiram a vida da adoentada", afirma Olindo Uiré Xavante. ''Essa decisão é da aldeia. Não praticamos, mas nós respeitamos o que eles decidem”, diz Leonardo Ceretene, também xavante.
O antropólogo Mércio Gomes, que já esteve à frente da Funai, diz que lei não funcionará. Ele reconhece que existe um dilema sobre o assunto e que a Funai precisa mediar o conflito. “A questão do infanticídio não é uma mera questão de saúde. É uma questão ética, em que dois pontos de vista cultural são confrontados. O mundo precisa de filósofos, éticos, antropólogos, indigenistas e do diálogo franco, aberto e intercultural com os povos indígenas”.
Conforme um agente da Funai, que falou com o DM, mas que pede anonimato, o infanticídio é comum em cerca de 10% das tribos brasileiras, sendo que ocorrem cerca de 10 a 20 mortes por ano. “É o que sabemos. São relatos, mas a regra aqui é não discutir isso. É um tabu, pois envolve um tema muito delicado que põe a perder toda nossa aproximação com as aldeias”, diz.
COSTUME
A questão do costume é complexa. Denominações da etnia kamaiurá, por exemplo, guardam claramente relatos de mortes de gêmeos. Para a tribo, o nascimento de gêmeos significa maldição. Localizados no Mato Grosso, eles formam uma das tradições mais destacadas do Alto Xingu, com cosmologia própria e relativa atuação produtiva em agricultura. Ao lado de outras tribos, praticam o infanticídio, afirma a ONG Atini, que é liderada pelo índio Eli Ticuna, que defende a Lei Muwaji. “Temos que defender os pequenininhos. Sabemos que muitas mães sofrem com isso e que de forma corajosa partem para desenterrar seus filhos, impedindo a morte deles. Mas a tradição e o que sabemos é de que muitos acabam morrendo”, diz ao DM.
Choque de princípios e normas
Considerado um dos principais constitucionalistas do país, José Afonso da Silva considera uma violência a execução da futura lei, que, para ele, seria desaconselhável. O jurista já se manifestou na imprensa pela necessidade de se respeitar as regras internas das aldeias.
Parte considerável dos constitucionalistas constata um choque entre o artigo dos direitos individuais e fundamentais e a declaração que as tribos devem ser respeitadas em sua totalidade cultural.
O artigo 231 diz que “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. E a abertura (caput) do 5º afirma: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.
É este embate em aceitar que os índios são também brasileiros e merecem as considerações referentes aos direitos humanos que movimenta todo o debate em defesa das crianças que serão executadas.
MAPA DA VIOLÊNCIA
As afirmações de que não existem números e dados sobre os homicídios começaram a ser questionadas em 2014 quando o “Mapa da Violência”, organizado pelo Instituto Sangari e Ministério da Justiça, passou a revelar casos pontuais de homicídios de crianças. O município Caracaraí, de Roraima, foi considerado o mais violento no “Mapa de Violência 2014”: em um ano 42 pessoas foram assassinadas no município, sendo 37 índios recém-nascidos.
Os dados de 2012 - já que o mapa atua com dados consolidados dois anos antes - diz que os ianomâmis contribuíram para colocar o município em lugar de destaque com taxa de 210 homicídios para cada 100 mil habitantes, sendo que a média do Brasil (que já é considerada alta) registre 29 homicídios por cem mil.
PARA PENSAR SOBRE A VIDA
Cena do filme “Hakani”: índio cava a sepultura da criança que será enterrada viva
Em seguida, ele entra na moradia indígena e pega a criança que será morta
O responsável pelo infanticídio coloca a criança dentro da cova diante dos demais integrantes da tribo. No filme, um adolescente implora para que não matem a criança
O índio olha a criança viva pela última vez e começa a jogar terra em seu corpo
A cena final mostra o índio distribuindo terra na sepultura: a criança ainda não está morta e mesmo após o adulto pisar na terra é possível observar o terreno se movendo (Imagens capturadas do docudrama "Hakani" )