Cultura

Tim Maia reina como professor da cornitude brasileira

Marcus Vinícius Beck

Publicado em 28 de setembro de 2022 às 14:01 | Atualizado há 4 meses

Se os críticos discordam sobre a obra, o autor tende a concordar consigo, dizia o escritor irlandês Oscar Wilde. Caso isso seja mesmo verdade, poucos viveram com a consciência tão tranquila em relação às suas criações quanto o brasileiro Sebastião Rodrigues Maia, carioca, chefão do soul tropical, um metro e sessenta e nove de loucura, 140 quilos capazes de produzir frases hilárias e desconcertantes, com o ponto devidamente batido em delegacias pelo País e responsável por shows memoráveis – aqueles, óbvio, em que deu conta de ir. 

Nada disso é exagero em se tratando de quem se trata. Em pouco mais de 20 discos e folclóricas apresentações de norte a sul, Tim Maia apresentou aos ouvidos brasileiros o delicioso suingue do soul, mas é impossível relegá-lo apenas ao cara que cantou “Réu Confesso” ou “Não Vou Ficar”: samba, pagode, balada, funk, jazz, blues, rock, xaxado e bossa nova – o que mais você quer? – marcam a obra do artista. Não só, fazem ela ser impossível de classificar, até hoje. Mas num ponto ninguém ousa contrariar. 

Exemplo: Tim Maia é um dos maiores cantores da MPB. Seu vozeirão, aclimatado na temperatura do mito da democracia racial, acalentou a cornitude brasileira. E quem assistiu o homem ao vivo, com seu jeitão debochado e questionando no meio da música interpretada onde estava “a porra do retorno”, jamais esquece. Além de tudo isso, mostrou-se ainda um intérprete grandioso, ao dar nova roupagem para o clássico “Garota de Ipanema”, canção gravada por Tim no disco “Tim Maia Interpreta Garota de Ipanema” (1990). 

Longe de ser quatro, quatro, meia (sujeito que não chega a ser cinco, segundo Tim), o público tem chance de vasculhar o armário das sacadas engraçadas com o documentário “Vale Tudo com Tim Maia”, que entra hoje no Globoplay – dia em que o cantor hilário completaria 80 anos, se não tivesse partido naquele 15 de março de 1998, em Niterói (RJ), após sofrer para cantar os primeiros versos de “Não Quero Dinheiro”. É um compilado de imagens raras, algumas das quais inéditas, com entrevistas, shows lendários e depoimentos.

O filme, diz Nelson Motta, um dos diretores, não teria sentido se não tivesse Tim narrando sua própria história, com seu estilo, suas gírias, loucura, comédia e barbaridades. “Ele era um comediante nato, nós reforçamos isso nele como narrador”, afirma Motta, em material de divulgação publicado no GShow, do Grupo Globo. Ele divide a direção do doc junto de Renato Terra, autor de “Narciso em Férias” e “O Canto Livre de Nara Leão”.

Sem análises ou depoimentos de especialistas, “Vale Tudo com Tim Maia” sustenta o mergulho ao mundo de Tim após apostar no ineditismo dele no centro do filme. Talvez por isso não tenha nenhuma menção às dívidas trabalhistas ocasionadas depois de músicos terem processado a Vitória Régia ou relacionamentos controversos, para dizer o mínimo, já que o ‘síndico’ chegou a dividir moradia com uma menina de 14 anos, conforme disse ao jornalista Ruy Castro, em entrevista publicada na Playboy em junho de 1991.    

Réu confesso: Tim lançou pouco mais de 20 discos e virou fenômeno da música brasileira – Foto: Reprodução

Em três episódios, Tim recorda-se dos fracassos sexuais (segundo ele, bem diferente de Erasmo e Roberto Carlos, este seu desafeto), lembra os tempos da banda Sputniks (na qual estiveram Roberto e Erasmo), fala sobre a prisão nos Estados Unidos que lhe valeu a deportação para o Brasil e ensina seu manual de ‘cornologia’. Também está no filme o preconceito que o artista sofreu por ser negro e cantar soul num Brasil no qual o sinônimo de música moderna era bossa nova (“um samba da Zona Sul, mas samba”) e versa sobre “Azul da Cor do Mar”, sucesso que catapultou o primeiro disco do artista, em 1970.

“Eu não comia ninguém”, confessa o artista, no documentário, às risadas. A obra dedica ainda atenção para a maluquice de Tim em participar da cultura racional, eventos místicos que tinham como bíblia o livro “Universo em Desencanto”. Foi nessa fase que o músico gravou dois dos melhores discos da carreira, com a voz limpa (não fumava, nem bebia ou cheirava) e uma black music arrepiante. Mas as letras, contraditoriamente, eram doutrinadoras. “É uma série para ver dançando e dando risada”, aconselha Renato Terra.

Como sua vida. Ou, numa consequência debochadamente esculhambada dela própria, suas declarações. “O bom da masturbação é quando você se senta em cima da mão esquerda para ela ficar dormente e pensar que é outra pessoa que está tocando”, soltou, certa vez. Não satisfeito, ao ser indagado sobre seus atrasos por Ruy, respondeu: “só bebo para andar de avião, porque morro de medo, e antes do show. Pô, 5 mil pessoas lá, todo mundo doidão, como é que eu vou cantar careta? Mas quando é no teatro, não bebo. Acabou, vou pra casa”.

Apesar de ter vendido 200 mil cópias com o LP de estreia (“nas minhas contas foram umas 800 mil”), a moradia de Tim estava abaixo do que se espera de um artista de sua importância. Habitava num quarto-e-sala na Barra da Tijuca com boa vista para o Oceano Atlântico, mas com grande quantidade de sacolas ao chão, o que parecia que ele vivia num permanente vai-e-vem do supermercado. Ostentação, definitivamente, não era com ele: jamais comprou um iate, exibiu carrões ou cantou em cruzeiros. Tim não é Roberto Carlos. 

Da mesma estatura musical de Otis Redding e Marvin Gaye, ícones da soul music, Tim Maia e sua loucura fazem falta ao Brasil. Além de “Vale Tudo em Tim Maia”, sua vida será contada hoje na maratona “Tim Maia – Vale o que Vier”, às 21h30, no Canal Brasil. E sua música, talvez para a fúria dos empresários do disco, nunca parou de tocar. 

Tim em filmes

‘Vale Tudo em Tim Maia’

Foto: Divulgação

Produção, composta por três episódios, foi dirigida por Renato Terra, de “Narciso em Férias”, e Nelson Motta, autor da biografia “Vale Tudo – O Som e a Fúria de Tim Maia”. Documentário conta com imagens raras, entrevistas e shows. Onde: Globoplay. 

Maratona Tim Maia – Vale o Que Vier

Canal Brasil/ Divulgação

Protagonizada pelo ator Babu Santana, a produção conta também com Alinne Moraes, Cauã Reymond e Jonathan Azevedo no elenco. Robson Nunes dá vida ao cantor na juventude e Babu está na pele do artista na fase mais madura. Onde: Canal Brasil. Horário: 21h30

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