Não faz do sexo um problema
Marcus Vinícius Beck
Publicado em 12 de julho de 2022 às 17:42 | Atualizado há 4 meses
Há um
zíper e um pênis está enrijecido. À esquerda, num vermelho meio borrado, lê-se
Rolling Stones. Por anos, acreditou-se que o órgão sexual representado na capa
de “Sticky Fingers” (1972) era o do vocalista Mick Jagger. Mas, não, longe
disso: os créditos por essa obra de arte foram a Andy Warhor, um dos
precursores da art pop nos anos 1960, que fotografou um modelo desconhecido
vestido numa apertada calça jeans escura, como se fosse uma licença visual para
sonoramente os Stones soarem ainda mais sujos, ainda mais marginais, aproximando-se
do blues norte-americano.
Foi um escândalo. Na Espanha que ainda vivia os instantes finais da ditadura franquista, por exemplo, o elepê precisou ser repaginado, numa capa que fosse mais paliativa ao gosto do ditador Francisco Franco. O novo designer, mais comedido que o anterior assinado por Warhol, posicionava o nome do vinil e da banda no canto superior esquerdo e, ao centro, via-se uma lata em que se lia “Fowler´s West India Treaclet”. Nos sebos, seja em versão de vinil ou CD, é artigo de luxo, caríssimo.
Nesta época, ninguém levaria a sério o sujeito que ousasse atribuir aos roqueiros a pecha de tiozão reacionário do churrasco de domingo. Afinal, como preconizou o guitarrista e compositor Pete Towshend em “My Generation”, era preciso morrer antes de ficar velho. Para falar a verdade, quem dissesse isso no final dos anos 1960, ao longo dos anos 1970, 1980 e até o grunge, na década de 90, estaria carimbando o recibo, em duas vias, com reconhecimento em cartório, de desconhecimento sobre um estilo musical que moldou o comportamento, a moda, a sexualidade, a política e a juventude.
Nesses
cinco pontos elencados, é pouco provável que haja um disco que tão bem
represente o espírito contestatório que acompanha o rock desde seus primórdios,
na década de 1950, quando surgiram Chuck Berry, Jerry Lee Lewis, Little
Richards e Elvis Presley, este hoje considerado persona non grata em certas
rodas roqueiras, como o elepê “London Calling”. Clássico eternizado pela banda
The Clash em 1979, em suas músicas, ainda se encontra inspiração contra a
tirania, revelando como vivem os marginalizados e falando abertamente sobre
luta de classes em metrópoles caóticas.
Para o fotógrafo Luciano Freitas, cuja vida mudou assim que escutou pela primeira vez “Nevermind” (1991), do Nirvana, o rock – embora hajam pisadas na bola de gente como Lobão, que gravou até música em homenagem ao astrólogo Olavo de Carvalho, ou Phil Anselmo, ex-vocalista do Pantera que simpatiza com o nazismo – não virou coisa de tiozão conversador. Mas ele reconhece que existe muitos deles nesse meio. “Principalmente entre a galera que ouve heavy metal”, afirma Luciano, em entrevista ao DM, fazendo ecoar frase dita por João Gordo, do Ratos de Porão, ao O Globo.
O
próprio Ratos, aliás, meteu o dedo na ferida com “Necropolítica” (2022), disco
lançado na Europa, nos Estados Unidos e na América do Sul em que um dos mais
longevos representes do punk e hardcore brasileiros se posiciona contra
negacionismo, fascismo, nazismo e racismo. Isso pôde ser visto pelo público
goiano durante o show que os paulistanos fizeram no Oscar Niemayer no último
Goiânia Noise. João Gordo, com pouca mobilidade por causa dos seus problemas de
saúde e fumando um cigarro ou outro, não se esquivou das críticas a Jair
Bolsonaro e seus aliados.
A essa
altura, Luciano, que estava entre a galera vestindo uma camiseta com o rosto de
Lula estampado, dizia a este escriba na apresentação do Ratos de Porão que a
estética suja e musicalmente agressiva do grupo é por si só uma revolta contra
o sistema. “Mas você prefere uma coisa mais Barão Vermelho”, atestou, no que o
repórter balançou com a cabeça, concordando. Independente das preferências
estéticas, contudo, ninguém ousa desconhecer a importância do grupo para
refletir a história do Brasil, como se as faixas de seus discos fossem uma crônica
que sai nos jornais.
“No
final dos anos 80, início dos anos 90, ainda em Manaus (AM), um cara que
estudava comigo organizou umas bebidas na casa dele e fui eu e mais três amigos.
Chegando lá, ele colocou ‘War Pigs’ (1970), do Black Sabbath, e de forma
imediata eu falei ‘caralho, que som foda! Aí comecei a me interessar’”, recorda-se
Luciano, que é cliente cativo da Confraria Bar, boteco tem David Bowie na
parede, mensagens antifascistas e, como não poderia deixar de ser, o bom e
velho roquenrou rolando nas caixas. “Logo depois voltei pra Goiânia e, no
início de 91, rolou o Rock In Rio. Vi pela TV o show do Faith no More e falei ‘esse
é o som que eu quero ouvir’.”
Segundo
o sociólogo Sérgio Vinícius de Lima Grande, o ronquenrou impacta o
comportamento jovem, até os dias atuais, apesar de ceder o domínio do mercado
musical ao sertanejo e ao funk, porque a sociedade contemporânea aponta para
uma maneira ímpar de ação simbólica no espaço urbano. “É por intermédio desta
noção que os grupos urbanos juvenis atuam, seja para participar, para se
auto-afirmar, para resistir ou para romper com os valores estabelecidos”,
afirma Sérgio Vinicius, em seu mestrado na Faculdade de Ciências e Letras da
Universidade Estadual Paulista.
Ditadura atrasou evolução do rock brasileiro
O rock
brasileiro, que existe em uma versão primata desde os anos 1950, teve sua
evolução atrasada no Brasil por conta da ditadura militar, que durou de 1964
até 1985, findada simbolicamente no dia em que Cazuza cantou “Pro Dia Nascer
Feliz”, durante show do Barão Vermelho no Rock In Rio de 85. Ele proferiu a
seguinte frase: “que o dia nasça lindo para todo mundo amanhã, com um Brasil
novo e uma rapaziada esperta.”
Antes desse episódio, os fardados proibiram nos anos 70 concertos de Rolling Stones, que só vieram ao Brasil em 1995. Mas o gênero engatinhava por aqui desde os anos 1950, com Nora Ney, Celly Campello e Miguel Gustavo. Na segunda leva do estilo em solo brasileiro, despontou uns tais de Sebastião Rodrigues Maia (mais tarde batizado Tim), Roberto Carlo e Erasmo Carlos. “Nunca tinha ouvido algo parecido, com vigor grande, contrabaixo alto, marcando o tempo como se fosse o ritmo do coração”, relembrou Erasmo, ao DM, quando escutou Little Richards pela primeira vez.
Da
Bahia, terra de João Gilberto, Caetano e Gil, saiu aquele que é considerado o
patriarca do rock brasileiro. Tomando como parceiro o Paulo Coelho, o roqueiro
Raul Seixas partiu rumo à “Sociedade Alternativa” e saiu enfileirando um hit
atrás do outro nas paradas, como “Gita” (1974), “Tente Outra Vez” (1975) e “Eu
Nasci Há Dez Mil Anos Atrás” (1977). Ainda durante os anos 70, os Secos &
Molhados, com seu primeiro LP, “Secos & Molhados I”, quase estabeleceu de
vez o rock na sociedade brasileira, com os singles “Sangue Latino”, “O Vira” e
“O Patrão Nosso de Cada Dia”.
Inspirado
pelo rhythm´n´blues à la Rolling Stones, o Made In Brazil atravessou os
fracassos e as trocas de integrantes fazendo os discos “Made In Brazil” (1971),
“Jack, o Estripador” (1977) e “Minha Vida é Rock´n´Roll” (1981). Também de
Sampa, Walter Franco chamou a caretice de “Canalha” no LP “Vela Aberta” (1980),
sem esquecer, contudo, de O Terço, Bicho da Seda, Casa das Máquinas, Os
Mutantes, Rita Lee & os Tutti-Frutti, A Cor do Som e Novos Baianos. Quem disse
que nos anos 70 não era bom?
Na década de 1970, em Goiânia, o baterista Moka Nascimento mandava ver ao sabor de Emerson, Lake & Palmer e Jethro Tull, com os músicos do Akuarius Seven e Os Tarântulas. Moka, neste período, chegou a tocar com o goiano Odair José, conhecido como ‘terror das empregadas’ por “Pare de Tomar a Pílula” e “Vou Tirar Você Desse Lugar”. Nos anos 80, com a febre inglesa de The Clash, The Smiths e The Cure, Goiânia viu o desabrochar de bandas como Markan Camaralina, com uma pegada mais rock´n´roll, e Língua Solta, cuja estética era hippie. O rock goiano foi narrado, em detalhes, pelo fotógrafo Jadson Junior, em “Das Cores ao Século XXI”.