Cultura

O garotinho de ‘Central do Brasil’ cresceu e brilha de novo na tela

Estadão Conteúdo

Publicado em 3 de julho de 2022 às 20:30 | Atualizado há 3 anos

Luiz Carlos Merten

Especial para a Agência Estado

Sem nhenhenhém – Vinicius de Oliveira lembra o set de “Central do Brasil”, clássico de Walter Salles que venceu o Urso de Ouro em Berlim (1998) e colocou Fernanda Montenegro na disputa do Oscar. “Fátima Toledo fez minha preparação, mas eu não era um garoto dócil, fácil de ser adestrado. Era marrento. Apesar da minha história, a Fernanda percebeu que ter peninha não ia ajudar em nada. Criou uma Dora marrenta, também.” Fernanda foi melhor atriz na Berlinale, foi a única brasileira indicada para o Oscar da Academia, mas hoje, passados 24 anos, quando se assiste ao filme, o que impressiona é a expressividade do rosto de Vinicius. Taco no taco com a maior atriz brasileira.

Vinicius
de Oliveira, 37 anos, dois filhos – meninos – de 9 e 7 anos. Quem conversa com
a reportagem, no café do cine Itaú Augusta, não é mais o garoto, mas o homem.
Vinicius integra o elenco de “Um Dia Qualquer”, de Pedro von Krüger, em cartaz
nos cinemas. Faz Maciel, lugar-tenente do miliciano interpretado por Augusto
Madeira. É hora de lembrar um pouco a trajetória do ex-engraxate – no aeroporto
Santos Dumont, no Rio – que, há alguns anos, aproximou-se daquele cara para
oferecer seu ofício. Olhou para os pés dele, estava de tênis. Ia batendo em
retirada quando, num impulso, virou-se e disse que estava com fome. “Me paga um
sanduíche?” O cara não apenas pagou como ficou observando o garoto.
Apresentou-se. “Sou Walter Salles e vou fazer um filme. Estou procurando o
ator. Quer fazer um teste?”

E
deu-lhe o cartão com o endereço da produtora Videofilmes. Vinicius não foi no
dia acordado. Esqueceu-se, e de qualquer maneira a mãe vivia alertando contra
estranhos. “Era uma época em que rolavam muitas histórias. Gente
sequestrada e morta para a venda de órgãos.” Salles não desistiu. Enviou
uma van da produção atrás de Vinicius no aeroporto. Desconfiado, o menino
perguntou se podia levar os colegas, engraxates como ele, e o irmão. Encheram a
van. O teste, Vinicius lembra, não foi bom. O assistente ligou para Salles, que
insistiu para Vinicius voltar no dia seguinte. O resto é história. A
repercussão internacional do filme abriu portas para ele, mas, de cara, não foi
exatamente um happy end. “Fiz uma novela, e não fui nada bem. Fiz outras
coisas que também não marcaram.” Ele só tomou gosto pela coisa – a
interpretação -, e percebeu que era sua praia ao trabalhar de novo com Salles
em Linha de Passe, de 2008.

Teste

Mudou-se
para São Paulo. Um dia foi fazer um teste. Ouviu de um amigo que o diretor Von
Krüger – ex-assistente de fotografia de Walter Carvalho – estava formatando o
elenco para um projeto multimídia. Série, filme. Era Um Dia Qualquer.
“Conhecia o Pedro, liguei para ele. Pedro disse que não tinha muito
dinheiro, mas gostaria de me ter com ele.” Bora! A primeira temporada foi
ao ar, o filme acaba de estrear nos cinemas. Agora é Vinicius quem pergunta:
“Gostou?” Um Dia Qualquer enfoca a violência das comunidades, no Rio.
Augusto Madeira faz o miliciano que domina, a ferro e fogo, o pedaço. Mariana
Nunes, sexy como nunca, é ligada ao tráfico. Madeira mata seu amante, e também
é amante dela. Mariana converte-se, vira evangélica. Vinicius, como Maciel,
está ali como pau mandado de Madeira.

Pais e
filhos. Madeira tem filho vagabundo que, na ausência do pai, faz sexo com a
madrasta. Mariana tem dois filhos, um que vira pastor e o outro que desaparece
no carro de Madeira. Ela põe a boca no mundo, vai à polícia. A ordem agora é
eliminá-la. “A série tinha seis episódios. O filme teve uma primeira
versão, que vi, e ganhou outra montagem que só vou ver numa sessão no
Rio.” No dia 28, no Itaú Augusta, haverá debate em São Paulo. Pedro
trabalha com estereótipos. O miliciano, o traficante, a crente, o moleque do
passinho. O que faz a diferença é a intensidade das cenas, do elenco. Num
momento interessante – revelador -, o miliciano Madeira ocupa o púlpito do
templo evangélico. Está tudo junto, misturado. Para incrementar a ação, olha o
spoiler!, o filho do miliciano rouba o revólver do pai, pratica um assalto e é
perseguido… pelo pai!

Reverso

Em
favor de Von Krüger, pode-se acrescentar que ele filma um Rio que é o reverso
do cartão postal. O cenário é Marechal Hermes, no subúrbio, Zona Norte do
antiga Capital Federal. Marechal Hermes surgiu como bairro operário, abriga uma
Vila Militar. “É importante estabelecer a diferença entre favela e
comunidade. Um Dia Qualquer é sobre as comunidades e o poder das milícias”,
define Vinicius. Uma segunda temporada da série começará a ser gravada. E?
“Não posso contar nada, só digo que quem não morreu estará de volta e o
meu personagem…” Vinicius faz um arco para cima – dispara! Ele merece.

Ao
chegar ao Café Fellini – a área toda está em litígio e o anexo do Itaú Augusta
pode ser demolido com metade da quadra, para sediar um projeto imobiliário, mas
essa é outra história -, Vinicius conta que estava ministrando uma aula de
teatro. Online, porque algumas crianças da escola particular na Vila Mariana
testaram positivo. “Sou amigo da diretora e, no ano passado, os alunos
resolveram montar uma peça na formatura. Ela me chamou para ajudar. Tínhamos
três semanas de preparação e a peça era O Auto da Compadecida. Achei que não ia
dar, mas eles me surpreenderam. Propus, e o teatro virou curso alternativo.
Estou muito feliz com a minha garotada.”

Que
uma coisa fique registrada. “Lá atrás, quando me iniciei, era quase um
mantra. Todo mundo nas entrevistas me perguntava sobre o destino trágico de Fernando
Ramos da Silva, o Pixote do clássico de Hector Babenco. Queriam saber se eu não
tinha medo que ocorresse o mesmo comigo. O Walter (Salles) me ajudou muito e à
minha família, fez questão que eu estudasse. Hoje sou pai, tenho a guarda
compartilhada de meus filhos, tenho uma carreira. E foi com o Walter.”

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