Cultura

Lygia Fagundes Telles gostava de lutar com palavras

Marcus Vinícius Beck

Publicado em 4 de abril de 2022 às 15:43 | Atualizado há 4 meses

Lygia Fagundes Telles, dizia Carlos Drummond de Andrade, gostava de lutar com as palavras. Dona de estilo elegante que por vezes serviu para lhe definir como a grande dama da literatura brasileira, a obra da escritora paulistana nascida em abril de 1923 ecoava ensinamentos machadianos e era capaz de manipular a escrita com serenidade, como se as frases, com suas vírgulas, seu ritmo e sua cadência, fossem uma lupa a partir da qual nos ajudava a pensar nossa existência. Seus personagens, sobretudo os femininos, como de “As Meninas”, viraram símbolo antimachista. 

Foi em 1973, auge da ditadura, que a escritora publicou esse poderoso romance. A história, levada à tela grande pelo cineasta Emiliano Ribeiro com roteiro assinado pela própria autora, se passava num pensionato de freiras, onde três jovens universitárias se preparavam para começar a vida adulta, porém cada uma delas separadas pelas suas realidades. Filha da burguesia, Lorena tinha aspirações literárias. Já Ana Clara, bela como uma modelo, dividia-se entre o noivo rico e o amante traficante. E, por fim, Lia – a militante de um grupo armado que derrete-se pelo namorado preso. 

Para o crítico Otto Maria Carpeaux, Lygia tinha algo da delicadeza atmosférica de Katherine Mansfield, contista neozelandesa que modernizou a literatura de seu país no início do século 20 antes de partir aos 34 anos vítima de tuberculose. “A diferença é apenas a seguinte: ela também sabe escrever romance e “As Meninas” é mesmo um romance de alta categoria”, atestou Carpeaux, jornalista-ensaísta pioneiro na cobertura de livros pela imprensa brasileira e autor de importantes obras para os estudos literários, como “As Revoltas Modernistas” e “História da Literatura Ocidental”.

Como se não bastasse já estar com o nome garantido entre os grandes autores de nossa literatura, Lygia ousou ainda descrever uma sessão de tortura numa época em que se evitava debater o assunto. E de quebra, ao narrar o suplício, transformou “As Meninas” em uma das obras mais aplaudidas pela crítica. Razões, por óbvio, não faltam: era 1971, tempestade à vista e corpos empilhados nos porões. Dois anos antes do lançamento, a escritora apenas rascunhou as primeiras páginas da obra, mas tudo mudou quando o porteiro do prédio lhe entregara uma correspondência.

Lygia Fagundes Telles | Enciclopédia Itaú Cultural
Lygia afrontou a ditadura militar com o romance ‘As Meninas’, publicado em 1973 – Foto: Arquivo Nacional/ Correio da Manhã

Entre as cartas, havia um panfleto anônimo, mimeografado, com rasuras e borrões. Narrava-se a tortura de um preso político. Escandalizada, Lygia mostrou o que tinha lido ao marido, Paulo Emílio Sales Gomes. “O que faço com isso?”, perguntou, incrédula. Ele, sem hesitar, vaticinou: “Aproveite em seu romance.” Foi neste momento que nasceu a “subversiva” Lia, mulher de seu tempo que retratou a realidade da época, de um Brasil amordaçado e, em duas páginas, plantou um ponto de interrogação (não há nada mais perigoso para os tiranos) na cabeça dos leitores.

Além de “As Meninas”, Lygia também brilhou nas histórias curtas. Em “Antes do Baile”, publicado pela Companhia das Letras, a escritora goza do mérito de ter obtido, seja no romance ou no conto, uma limpidez adequada a uma visão que penetra à realidade. “Sem recurso a qualquer truque ou traço carregado, na linguagem ou na caracterização”, disse o crítico literário Antonio Candido. Nas 18 histórias deste volume, numa prosa envolvente e calorosa, desenrolavam dramas e comédias de divas, da ópera, do menino do saxofone, de motoristas de caminhão, de velhos aposentados, de amantes em descompasso e de casamento prestes a ir pelos ares.

Em carta trocada com Lygia, Carlos Drummond de Andrade afirmou que o livro estava perfeito como unidade na variedade. Para o poeta, a mão da autora era segura e sabia sugerir a história profunda sob a história aparente. Até mesmo, continuava, em um conto passando na China a escritora conseguia fazer funcionar, sem se perder no exotismo ou no jornalístico. “Sua grande força me parece estar no psicologismo oculto sob a massa de elementos realistas, assimiláveis por qualquer um. Conto de você fica ressoando na memória”, explicou o autor de “Sentimento do Mundo”.

Não por acaso, como sua própria obra nos ensina, a literatura pode ser, sim, um instrumento para mudar o mundo. Por meio das letras, Lygia compartilhou com os leitores novos conhecimentos e novas impressões a respeito da realidade brasileira. Mas, para agradar o pai, primeiro estudou na Faculdade de Direito da USP. “Decidi ser advogada por causa do meu pai, Durval, que também se formou na São Francisco. Era um homem lindo, adorável, mas que tinha um grande pecado: era um jogador contumaz”, recordou-se Lygia, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, em 2013.

Em 1941, matriculada na USP, Lygia conheceu a poeta Hilda Hilst. Formada também em educação física, começou a participar de rodas literárias. Seu primeiro livro, “Porão e Sobrado”, saiu em 1938, numa edição bancada pelo pai. Já o segundo, “Praia Viva”, de 1944, foi lançado um ano antes de concluir a faculdade. E, três anos de depois de pegar o canudo, publicou a terceira obra de contos, “O Cacto Vermelho”, com a qual foi agraciada pelo Prêmio Afonso Arinos da Academia Brasileira de Letras (ABL).

Antonio Candido, sociólogo, crítico literário e ensaísta morreu nesta sexta-feira (12), aos 98 anos
Antonio Candido reconheceu ‘Ciranda de Pedra como uma obra-prima – Foto: Marcos Santos/ USP Imagens

No final dos anos 1940, a escritora casou-se com Goffredo da Silva Telles Júnior, de quem herdou o sobrenome e teve um filho, o cineasta Goffredo Telles Neto, morto em 2006, aos 52 anos. Contista aclamada e elegante, na década de 50, decidiu escrever seu primeiro romance, “Ciranda de Pedra”, reconhecida por Antonio Candido como uma obra-prima. Segundo o crítico, o livro marcava o início da maioridade da escritora, que publicou em 1963 “Verão no Aquário”, seu segundo, ano em que, já separada, firmou o matrimônio com o crítico de cinema Paulo Emílio Sales Gomes.

“Paulo sempre foi um grande incentivador da minha obra, especialmente nos momentos mais difíceis”, continuava, na entrevista, publicada em 2013. Além dos romances, Lygia também demonstrava jeito único para a arte do conto, como é possível observar em “Antes do Baile”, “Seminários dos Ratos”, “A Disciplina do Amor”, “Mistérios” e “A Noite Escura e Mais Eu”. Em 1985, por coincidência ano em que o Brasil foi redemocratizado, a autora passou a ocupar a cadeira 16 da ABL. “A função do escritor é produzir sentido e só o sentido se opõe à loucura”, disse, num bate-papo com o crítico José Castello.

Fagundes Telles encantou na manhã deste domingo, 3. Ela estava com 98 anos. “Tem literatura que se abre a partir da experiência”, afirma a professora de literatura Eugênia Fraietta, em post publicado nas redes sociais no qual narra um encontro com a escritora na cidade de São Paulo durante evento. “Ela conversava com cada pessoa e abraçava ou pegava nas mãos e olhava bem nos olhos”, complementa Eugênia, que participou na década de 1990 de grande encontro literário em que estava Lygia Fagundes Telles.


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