Cultura

Com elucubração de ‘Ulysses’, James Joyce cria caleidoscópio a partir do qual desafia gerações de leitores

Marcus Vinícius Beck

Publicado em 1 de fevereiro de 2022 às 23:31 | Atualizado há 4 meses


A linguagem, se verdadeira, dizia Paulo Francis, é revolucionária. Monólogo interior sobre o desespero da condição humana num dia normal, James Joyce influenciou com seu catatau centenário “Ulysses”, relançado há pouco em tradução revista pela Companhia das Letras, escritores que influenciaram escritores que influenciaram escritores que influenciaram escritores, de Vladimir Nabokov a José Saramago, de Thomas Pynchon a Jorge Luis Borges, de Clarice Lispector a Paulo Leminski: a obra joyceana não é um objeto que versa sobre o mundo – é o mundo em si.

Antonio Candido, nosso maior estudioso em matéria de literatura, defendia a tese segundo a qual a literatura possibilita as pessoas ter maior conhecimento de si e do mundo que lhes cerca. Mas não seria exagero admitir que uma obra literária foi capaz de mudá-lo apenas por causa de sua existência, sem levar em consideração quantos leitores tinha? “Ulysses”, por óbvio, não é pouco lido, e é certo que seus admiradores o utilizam como um honesto objeto para ficar exposto na estante de casa.

Sim, aventurar-se a passar um tempo com Leopold Bloom e Stephen Dedalus é convite a abandoná-los tão logo chegamos à página 60. Ler “Retrato de um Artista Quando Jovem”, romance de formação assinado por James Joyce, é mais fácil que encarar “Ulysses”, por exemplo. Publicado em 1916, a obra apresenta pela primeira vez o estilo em fluxo de consciência que Joyce, junto da madeleine com a qual Marcel Proust provou ser o tempo perdido, fez se virar uma técnica narrativa imitada em quantidade industrial, desde os beats até a não-ficção de Tom Wolfe. 

Da infância à vida adulta, numa conturbada Irlanda daquele primórdio de século 20, Joyce concebe um estilo que vai evoluindo à medida que Dedalus cresce para narrar seu processo de maturação psicológica, acadêmica, religiosa, filosófica e estética. Entrelaçando técnicas narrativas, o escritor – em sua estreia como romancista – ora aproxima, ora distancia o leitor do personagem principal, à medida que vamos avançando nas etapas de desenvolvimento humano do alter-ego do autor e acompanhamos os conflitos internos dele em relação ao catolicismo e à arte.

Joyce, como se sabe, precisou de pouco para revolucionar o romance. Em “Ulysses”, ele elevou ao extremo o que havia feito em “Retrato de um Artista Quando Jovem”. Dentre as conquistas mais famosas, está o uso da técnica de fluxo de consciência que Joyce ajudou a canonizar, a escrita de parágrafos grandes sem pontuação, como se o texto fosse um diálogo interno com o personagem, a concentração da história num único dia (16 de junho de 1904, numa quarta-feira), o uso de palavras consideradas chulas, como “foder”, “buceta” e “gozar”, o que tornou o livro censurado assim que os primeiros capítulos apareceram em jornais americanos.



 James Joyce em pintura feita pelo artista visual Jacques-Emile Blanche: além de ‘Ulysses’, escritor também transformou literatura com ‘Retrato de um Artista Quando Jovem’ e ‘Dublinenses’ 

Hoje clássico, a vida de “Ulysses” nem sempre foi, digamos, agradável. Desde o princípio, o romance caiu nas graças de nomes como T. S. Eliot, W. B. Yeats, Ernest Hemingway, Vladimir Nabokov e Ezra Pound, este um dos padrinhos da obra. No Brasil, a epopeia de Bloom tem três edições: a primeira, de Antonio Houaiss, lançada em 1966, depois de Bernardina da Silveira Pinheiro, publicada em 2005, e, por fim, Caetano Galindo, de 2012. Todas, de fato, são boas, embora a primeira e segunda sejam truncadas. Até aí, porém, nada demais: a obra é realmente difícil.

Em última análise, “Ulysses” é a mais profunda tentativa de ingressar no inconsciente humano. Para Paulo Francis, o polemista que começou a carreira na esquerda e depois migrara à direita, só Joyce e Freud com seu “A Interpretação dos Sonhos” conseguiram tal empreitada. Francis esqueceu, todavia, de Proust e sua busca pelo tempo perdido. Mas seria bom mesmo que você, muito mais do que compreender a importância da “Odisseia”, de Homero, ao inventar de ler o romance, estivesse minimamente familiarizado com as questões sócio-políticas da Irlanda na virada dos séculos 19 e 20.

Muito mais do que qualquer outra coisa, James Joyce criou uma obra de arte literária sem a qual dificilmente seria possível imaginar textos celebrados como “Catatau”, anti-romance publicado por Paulo Leminski, e “A Hora da Estrela”, clássico de Clarice Lispector. Isso deixando de mencionar, óbvio, o romance-pop contemporâneo “Pornopopeia”, de Reinaldo Moraes. Sem tirar nem pôr, todos nós temos um quê joyceano.

Ulysses

Autor: James Joyce

Tradução: Caetano W. Galindo

Gênero: Romance

Editora: Companhia das Letras

Preço: R$ 189,00 (pré-venda) ou R$ 49,90 em ebook


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