‘Não Olhe Para Cima’ mostra complô entre endinheirados, negacionistas e imprensa acovardada
Marcus Vinícius Beck
Publicado em 29 de dezembro de 2021 às 16:16 | Atualizado há 4 meses
O
jornalismo se acovardou. Mais preocupados em soarem engraçados do que com a
função da imprensa na democracia, dois apresentadores de um telejornal matutino
de grande audiência fazem piada sobre uma descoberta que pode matar todos.
“Qual é o tamanho dessa coisa? Pode destruir a casa da minha ex-mulher”,
pergunta o apresentador, rindo de um meteoro que possui reais chances de
destruir a Terra. Kate Dibiasky (Jeniffer Lawrence), doutoranda que descobrira o
tal cometa, rebate o comentário do jornalista. “Há 100% de chance de todos nós
morrermos.”
Antes se sentarem diante dos sorridentes manequins do noticiário, Kate e Randall Mindy (DiCaprio) vão até a presidente dos Estados Unidos, Janie Orlan (Maryl Streep). Sabem que o asteroide é gigantesco. Está em rota de colisão com o planeta. O impacto vai extinguir a vida. Junto de Dr. Clayton Oglethorpe (Rob Morgan), do Escritório de Coordenação da Defesa Planetária da Nasa, os cientistas expõem o problema. Mas quem se importa? Não Janie e nem seu gabinete de negacionistas e poderosos preocupados com dinheiro, fama, cabelo bonito e outras futilidades.

Sim,
“Não Olhe Para Atrás”, filme dirigido pelo cineasta Adam McKay e já disponível
nos cinemas e Netflix, dedica-se em tempo integral a entregar uma (boa) comédia
satírica sobre uma presidente que quer, por tudo o que lhe é mais sagrado,
ganhar as próximas eleições. Sua lógica, dentro das limitações que esse tipo de
gente costuma ter, compreende que o meteoro pode ser cuidado depois. E assim,
cercado por irresponsáveis, desdenha do que de fato está em jogo: a extinção da
vida humana.
Mas ela
não é a única a zombar dos pesquisadores. Ora, nem poderia. Afinal, a
diretora-geral da Nasa defende os cientistas das investidas tresloucadas da
chefe da Casa Branca? Não. É inevitável não estabelecer paralelos com o antigo
inquilino Donald Trump e até mesmo com seu equivalente brasileiro, com uma
política que se aproxima do absurdo – e uma bem chinfrim, aliás – à qual o
estado demencial das coisas vira o padrão a ser louvado e seguido. E em todos
os lados a que se olha, existem tipos perversos, endinheirados inescrupulosos e
celebridades fabricadas.
É o caso, por exemplo, da estrela pop Riley Bina, interpretada por Adriana Grande. Apesar de sua popularidade ajudar a conscientizar as pessoas, ela está preocupada em derramar as lágrimas por um amor mequetrefe. A mídia corporativa se faz inútil, mais interessada em puxar saco dos donos do poder do que investir em reportagens honestas, embora o roteiro se esforce para destacar que os meios de comunicação de massa são os únicos instrumentos capazes de mudar a maré da opinião pública.
Tudo parece ser uma piada, não do tipo que se gargalha até fazer doer o maxilar, mas sim aquela de desespero. “Não Olhe Para Trás” utiliza-se do remédio da sátira para arquitetar uma arapuca desordenada que tem à linha de frente cientistas, políticos, militares, jornalistas e outros profissionais que enfrentam – ou apenas fazem vista grossa? – para uma ameaça que possui chances de aniquilar a vida. “Ouvi dizer que há um asteroide ou um cometa ou algo que não gostamos da aparência”, afirmou uma entediada presidente dos EUA para um grupo de pesquisadores.
De fato, o longa faz ranger os dentes, despertar angústia, até nos desespera: os fatos são reais, mas eles só não aconteceram – ainda. Pense na covid-19: será que não ocorreram negações, guardadas as devidas proporções, e sem a licença do discurso ficcional, semelhantes a narrada em “Não Olhe Para Trás”? Quantas vezes, seja aqui no Brasil ou lá nos Estados Unidos, pesquisadores tentaram alertar o perigo que a pandemia representava e foram desacreditados por burocratas mais interessados em fazer aumentar a conta bancária? São perguntas, inevitáveis, levantas pelo filme.
O tom
escolhido por McKay, sem dúvidas, é frenético, estridente e revoltado. Dialoga
com “Dr. Fantástico”, filme clássico do americano Stanley Kubrick, mas demostra
preocupação com instituições que empilharam erros e preservam padrões
equivocados. Por todos os lados, estão críticas aos extremistas e à imprensa,
que se condensam pelos boatos determinados pelas redes sociais. A cientista
interpretada por Jennifer Lawrence, por exemplo, não demora a virar meme, ser
alvo do machismo comum a esses extratos sociais e escolhida a pessoa a ser
odiada.
Em “Não Olhe Para Atrás”, McKay esmiúça as alianças típicas do jogo eleitoral, que envolvem políticos e empresários endinheirados mas inescrupulosos, bem como a sina em espetacularizar a desgraça e dar voz – no caso aqui os meios de comunicação – a ideias negacionistas, promovendo o famoso “dar palco para maluco sambar”. Por isso que quando Randall, personagem de Di Caprio, ele próprio preocupado com pautas ambientais e alvo da fúria de Jair Bolsonaro, diz “como faremos para nos entender” estamos na verdade numa encruzilhada onde o complô pela tragédia está montado.
Além de
ser, por supuesto, uma síntese do mundo nos últimos anos. Estamos diante de uma
obra contemporânea, necessária e urgente, com atuações primorosas, como a da
diva Maryl Streep fazendo a gente se encolher em frente à tela. Com DiCaprio, a
forma com a qual McKay o dirigiu já pode ser alçada ao expecto do memorável,
porque ele representa – nas vestes de um cientista que honra sua profissão – o
xis da questão por trás do filme: o poder destruidor da ganância humana.
Se
Kubrick elevou a sátira a condição de importante instrumento de crítica com seu
“Doutor Fantástico”, filme tragicômico sobre a ameaça de um holocausto nuclear
durante a Guerra Fria, de forma mais modesta – sem ser menos importante, no
entanto – “Não Olhe Para Trás” parte da ameaça de um meteoro para registrar a
insanidade em relação à degradação ambiental e ao negacionismo da covid-19. Com
um preocupante detalhe: os tipos paspalhões da ficção parecem ingênuos parte
dos da realidade.
Não
Olhe Para Atrás
Diretor: Adam McKay
Gênero: Sátira
Duração: 2h18 minutos
Classificação
indicativa: 16
anos
Disponível
na Netflix