Ritual de cura pela fé
Diário da Manhã
Publicado em 31 de agosto de 2018 às 01:51 | Atualizado há 4 meses
A benzeção é uma prece feita pelos homens através da força da fé e do pensamento elevado aos espíritos da boa iluminação com pedidos para conceder a cura, trazer bênçãos e limpeza do espírito. Ela é o meio que concede ao seu guia a possibilidade de estabelecer relações de solidariedade e de pacto com os santos de um lado, e com os homens do outro entre ambos simultaneamente. Uma condição de concentração e animosidade efetuada por meio do amor ao próximo e da espiritualidade ligada ao divino que é considerada um dom que não pode ser forçado, pois acontece naturalmente e é ensinado por mães avós e avôs. Uma crença que independe de qualquer religião ligada fortemente pelas forças da fé e da caridade com o propósito de cura do corpo e da alma. O benzimento ganhou força no Brasil com a chegada dos imigrantes e da colonização. Nessa época as classes que predominavam sobre a cultura do benzimento eram parteiras e benzedeiros.
O OFÍCIO
“As benzedeiras e benzedores encaram seu ofício como um serviço assumido por tradição, por acreditarem no bem que fazem aos outros. Não cobram pelos serviços prestados, mas muitos dos que procuram seus serviços costumam levar presentes como forma de agradecimento. Não saem nas ruas oferecendo seus serviços, mas recebem todos que os procuram”, diz Lucinete Morais, 37, antropóloga.
Ela revigora as forças da alma e do espírito deixando a pessoa em um estado de tranquilidade e paz interior elevando seu estado mental, fazendo com que a pessoa que recebe a benção renove suas forças, espantando as más energias, trazendo cura . Ao decorrer da benzeção a pessoa sente lapsos de leveza, internalizando as rezas feitas ao longo do processo, e assim mentalizando somente coisas boas; se sente bem mais leve após acabar. Um dom que foi internalizado dentro de uma cultura antiga e eficaz que revela saberes até os dias de hoje sem uma explicação evidente de sua eficiência. Uma oferenda simples que não depende de dia, horário, ou local para ser praticada. O benzedeiro Senhor Manoel Ducéu, 71, conta um caso em que encontrou uma mulher doente, e logo no outro dia após benzê-la ela já estava melhor: “Um dia cheguei no Hospital da cidade, e Dona Corvina estava com erisipela (infecção de pele), coisa mais feia do mundo. Ela disse–acho que minha perna vai cair. Fui na frutaria comprei uma abóbora bem grande, cortei um pedaço dela, passei nas pernas dela e benzi, peguei as sementes e enterrei. No outro dia fui ao Hospital e dona Corvina tinha se recuperado da erisipela.
Antropóloga e gestora de projetos na Luppa Luz de Projetos de Patrimônio e Arte, Lucinete Morais conceitua um pouco sobre a cultura de benzeções: “Em termos de relevância cultural, a transmissão do dom da benzeção possibilita a continuidade da tradição arraigada no meio popular. Muitos herdaram de seus pais e avós o dom de benzer, outros o dom é nato e fica ali inerte até a revelação”. E ainda complementa sobre o dom: “A descoberta do dom é como renascimento, o benzedor ou benzedeira passa a viver uma nova vida, sob novos códigos, símbolos e a favor da comunidade. O reconhecimento do dom vem pela eficácia do encontro afetuoso – da fé do que benze e a crença do que é benzido, resultando na cura”.
Geralmente os rituais de benzeção contêm trechos que são repetidos como mantras sendo repassados às pessoas que querem aderir às crenças de benzer e guiados como uma tradição. São trechos que falam sobre luz, limpeza espiritual e física, cura, iluminação e bênçãos. Trechos repetidos várias vezes encerrando com a reza do Pai Nosso ou Ave Maria. Nas bênçãos são utilizados diversos apetrechos para realizar o rito, geralmente são ramos de folhas e em maioria das vezes é utilizada a arruda (que no dicionário popular representa a planta que espanta mal olhado e inveja). Dona Iulina Carolina da Silva, 82, benzedeira há mais de 20 anos conta como são os trechos de suas bênçãos: “Você está com mau olhado? Está com inveja? Então vou benzer: “Eu vinha pelo caminho e encontrei Nossa Senhora, sentada na pedra fria e curava todo mal que havia, especial fulano que o mau olhado, inveja, magia negra, macumba, feitiço, feitiçaria, mal-estar, baixo astral, mau humor, nervoso, dor de cabeça, e tudo de ruim que sentir; Ave Maria, Ave Maria, Ave Maria. Reza da Ave Maria ao final”
Contato com as benzedeiras
Avenida Walter Carneiro Machado, quadra F, lote 23, n. 876, Setor Campos 1, Santo Antônio de Goiás
A força do raminho de arruda
A maneira que se benze, bem como os objetos utilizados, de diferentes maneiras, visam principalmente a cura do corpo e da alma como explica o benzedor Celino, 51 anos, morador da cidade de Goiás, na comunidade quilombola Alto Santana: “Tinha muito benzedor que usava o símbolo como um raminho, folha de arruda ou guiné, até mesmo o fedegoso. Tem outros que benze, igual o cobreiro, usa o talinho da mamona. Agora da minha parte, se tiver o rosário pela simples fé da pessoa. Um simples gesto já serve… porque o escudo a gente sabe que tem sempre ao redor, a aura toda formada, né? Porque um gesto que você faz é um símbolo do pensamento elevado ao Pai criador…”, comenta.
Dona Iulina C. contou em entrevista ao Diário da Manhã que aprendeuabenzerporcausadeumadoença de seu filho. A curiosidade por benzer se deu por causa de uma enfermidade do filho ainda pequeno, por causa de uma febre forte e mal estar ela procurou uma benzedeira da cidade que ao benzer curou imediatamente aquele mal estar, e após foi aprendendo a benzerdesenvolvendo uma forma própria de benzer adicionando mais palavras às suas rezas e orações em seus rituais e hoje pratica a crença com muita fé benzendo até mesmo quem não solicita suas benzeções: “Eu aprendi a benzer por que o meu menino deu uma febre a noite e eu fiquei sem saber o que eu fazia, levei na benzedeira logo cedo, e ele se curou ali naquela mesma hora, aí eu falei,–nossasenhoracomadremeensina a benzer–e ela me ensinou”. Um dom que ela descobriu por curiosidade, foiaprendendo, foibenzendo, e hojeéumadasbenzedeirasmaisprocuradas em Santo Antônio de Goiás (a 17 quilômetros da UFG).
A palavra “benzer” vem de vários significados, um deles significa: fazer o sinal da cruz, é este o símbolo que dá início à benzeção. São diversas as doenças pelas quais as pessoas procuram as benzeções em busca de cura e limpeza: cobreiro, quebranto, vento-virado, mau-olhado, espinhela caída entre muitos outros nomes que distantes do universo científico, fazem parte de um mundo místico, povoado de benzeções, orações, crenças, rezas e simpatias. Narareth Cândida de Freitas, 52, benzedeira, todas às quintas-feiras abre as portas do Museu de Santo Antônio de Goiás para receber pessoas que querem benzer, e ela explica como vê a perspectiva das benzeções: “A benzeção ela é energia, você consegue benzer qualquer pessoa de longe. A energia ela vem do universo, e pela fé ela vai longe. A energias ultrapassam vidas. A benzeção ela não pode ser negada”, destaca.
ERVAS
Alguns benzedeiros após benzer uma doença indicam algumas ervas para auxiliar na cura de algumas doenças benzidas como explica Lucinete Morais: “Benzedores(as) são procurados para solucionar problemas de saúde, concorrendo muitas vezes com a própria medicina, e oferecendo uma alternativa aos mais necessitados. O ritual de benzer apresenta três fases que compõem o processo ritualístico: o diálogo, a benção e por fim as prescrições com orações ou mesmo chás e ervas”, afirma. Ela também fala sobre a relevância imaterial que estas tradições têm para com a sociedade: “São conhecidos pela cura das moléstias ou resolução dos mais variados problemas humanos. Além de benzedores e benzedeiras, são também conselheiros e conselheiras. São guardiões desse patrimônio imaterial que une o mundo material e espiritual”.
Quem não recorda dos pais levando os filhos para benzer quando pequenos? Antigamente a benzeção era uma tradição muito forte nas famílias. Era preciso benzer o filho ao menos uma vez ao mês para que não contrair doenças, e manter os maus espíritos bem longe do sono dos pequenos. Hoje a tradição ainda existe, mas com bem menos fervor. A benzeção é tida hoje como um “lavar de almas”, uma restauração das boas energias, e o reencontro com o espírito.
Além de curar doenças ela também traz alívio para dores tanto físicas quanto espirituais. O benzedeiro Ducéu fala um pouco sobre como aprendeu a benzer: “É um dom que vem pela mãe da gente. Minha mãe ela era benzedeira e me ensinou a benzer desde pequenininho. Ela morreu com 99 anos, benzeu até no dia de morrer. E ninguém quer aprender, eu pelejo mas ninguém quer. Benzedores lá em casa éramos eu meu irmão e minha mãe”. Ele também comenta a respeito de como acontecem suas benzeções: “Vem gente de longe para eu benzer, e eu nunca cobrei nada de ninguém não, mas sempre trazem alguma coisa, algum agrado como gratidão. A benzeção não depende de nenhuma religião mas ela é ligada ao católico. Minha família tudo era católica”, enfatiza.
É uma prática cultural que carrega em si as energias de um povo antigo e perdura até os dias capitalistas de hoje. Uma tradição cultural enraizada, pois nela acredita-se que da terra vem as doenças e dela também vem as curas. É uma relação muito forte com o ser, pois está diretamente ligada à natureza, e principalmente às mulheres, que tem uma ligação ainda maior com a natureza, pois o papel das benzedeiras na sociedade é como o papel das mães de acolher, conversar, ouvir, aconselhar, tocar, interagir. Contudo as práticas de benzer com certeza trazem algo de novo para as pessoas, a esperança, boas energias, caso contrário a cultura não existiria até os dias de hoje.
Os sábios e as sábias que aprenderam com os seus pais e avós, apenas vendo o ritual, hoje, são os que nos acolhem. É preciso um trabalho interdisciplinar de sensibilização para sua continuidade, pois muitos jovens não se interessam pela tradição popular da benzeção, o que leva o risco de desaparecimento desses saberes e fazeres – ouvir, benzer e aconselhar – tão importantes para as comunidades”Lucinete Morais, 37, antropóloga, e gestora de projetos