“Minha grande paixão foi o teatro. Foi a única coisa que amei na vida”
Diário da Manhã
Publicado em 19 de julho de 2016 às 01:29 | Atualizado há 4 mesesNascida no início do século passado, em 1907, na cidade de Santa Maria Madalena, interior do Rio de Janeiro, a comediante Dercy Gonçalves esteve presente em várias etapas do desenvolvimento das artes cênicas do País. Acompanhou as mudanças no teatro e a ascensão de novos meios midiáticos como o cinema, a televisão e a internet. Sua impressionante longevidade e irreverência fizeram com que os últimos anos de sua vida (que encerrou-se aos 101 anos) fossem curiosamente acompanhados pela população brasileira. Era conhecida por sua linguagem espontânea, e não economizava palavrões. Sua contribuição às artes do País vem sendo cada vez mais reconhecida e estudada por pesquisadores da área das artes.
A pesquisadora Virgínia Namur, em sua tese de doutorado intitulada Dercy – o corpo torto do teatro brasileiro, faz um levantamento de toda sua produção cênica durante oitenta anos de carreira. O trabalho foi apresentado em 2009, cerca de um ano depois da morte da atriz, e foi motivado pela versatilidade da figura de Dercy, conhecida por explorar o campo do humor durante 80 anos, entre peças teatrais, filmes, novelas de TV, ou sua própria participação na mídia em geral. Para Virgínia, a atriz é um exemplo completo, elimina uma lacuna na história das artes cênicas do Brasil devido as suas várias faces. “Do teatro de revista e de comédia para o cinema e a televisão e chegando depois de quase um século de atividades às mídias digitais como ícone de um tipo específico de humor”.
Segundo a autora, pesquisar a carreira da atriz Dercy Gonçalves possibilita ter uma visão mais ampla do comportamento do teatro nacional devido à aderência de várias influências as quais a centenária atriz esteve em contato. Ela explica: “Dercy Gonçalves está na oportunidade que oferece sua longevidade ativa não só de examinar oitenta anos de cena brasileira, mas, principalmente, de observar nessa cena um fenômeno curioso, de grande valia para uma revisão do próprio teatro nacional: a vitalidade e resistência de alguns de seus procedimentos de tradição popular”. A importância da atriz também estaria, segundo Virgínia Namur, na sua versatilidade midiática, tendo em vista que esteve presente tanto no teatro, quanto no cinema e na televisão.
Mudanças
Virgínia Namur elege Dercy Gonçalves como uma figura icônica e enciclopédica, que apesar da enorme fama diante do público, também acumulou conhecimentos artísticos de uma forma ímpar no meio artístico nacional. As artes no Brasil, segundo a pesquisadora, também passaram por um processo de flexibilização devido aos inúmeros avanços tecnológicos possibilitados pelas décadas. Ela afirma que Dercy “pode, por isso, retratar os desdobramentos do cômico-popular durante o último século, quando a sociedade brasileira passou por uma abrupta e ‘mais ou menos’ programática industrialização, manifestando excepcional dialogismo, ou seja, extravagante permeabilidade a interações e flexibilidade a mudanças”.
A pesquisadora completa ainda nossa visão explicando as grandes mudanças pelas quais o teatro brasileiro passou, ora mais tradicional, ora aberto a novas influências. Dercy esteve presente nas duas etapas, bem como em seu período de transição. “Assim, remete ao mesmo tempo ao passado, fazendo supor relações bem mais estreitas entre o popular e o erudito do que podem desejar uma crítica e uma história aferradas ao sublime, mas igualmente arrasta para o futuro uma antiga tradição. Em determinado momento de sua carreira começou a ser vista de forma radical”. “Exemplo de radical dialogismo popular, capaz de se avessar a toda idealização e sublimidade, Dercy Gonçalves se torna, então, uma peça chave na conformação de outras possíveis versões dessa história”.
A autora comenta ainda a presença de Dercy no cenário artístico pós-internet do País. “Através de intercâmbios com mídias que ajudaram a forjar a ‘toque de caixa’ a sociedade de massa e de consumo no País, atravessa os tempos e chega ao contemporâneo, onde se insere na cibercultura como ícone de um tipo específico de cena”. A imagem de Dercy foi amplamente explorada por páginas de humor da rede, tanto por sua espontaneidade quanto por sua incomum longevidade. Sites como o satírico Desciclopédia, uma versão totalmente escrachada da Wikipédia, por exemplo, traziam Dercy como uma de suas principais piadas nos últimos anos que antecederam sua morte, e principalmente após seu centenário.