Antropofagia sexual
Diário da Manhã
Publicado em 24 de junho de 2016 às 02:38 | Atualizado há 9 anosO sexo, vulgarmente falando para o homem brasileiro, tem um quê de antropofágico ou canibal. “Vocês nem vão acreditar o que aconteceu comigo sábado passado. Comí a fulana de tal. Uma delícia de mulher!” Diz um tipo de malandro, quase sussurrando ao ouvido dos amigos, ávidos pra ouvir uma palestra picante, que os arrebata da mesmice nas asas fulgurantes da imaginação.
Tal situação, em inglês coloquial, se diz saborosamente “to fuck her” e não “to eat her”, que soa radicalmente estranho para os anglófonos. Antropofagia e sexo talvez seja uma associação exclusiva e especificamente brasileira. Seria difícil, para um norte-americano, se porventura ouvisse o malandro fazer aquela confidência, meter na cabeça ou entender que o antropófago brasileiro sr. beltrano de tal comeu a vizinha fulana de tal, no vestíbulo de casa, às quatro da manhã, e que, para assombro dele, estupefação do americano, a brasileira fulana de tal, apesar de plenamente comida, continua viva e gozando de boa saúde.
“Is she alive? It´s incredible!”
Um dos mais profundos antropólogos brasileiros, Roberto DaMatta, acentua em seu livro O que faz o brasil, Brasil (1984), mais ou menos esse mesmo curioso aspecto da alma nacional:
Falamos que “mulher oferecida não é comida”, num trocadilho chulo mas revelador da associação, intrigante para estrangeiros, entre o ato sexual e o ato de ingerir alimentos. Entre a mulher da rua, a prostituta, ou a mulher que controla e é dona de sua capacidade de sedução e sexualidade, e certos tipos de alimentos. (…) O fato é que as comidas se associam à sexualidade, de tal modo que o ato sexual pode ser traduzido como um ato de “comer”, abarcar, englobar, ingerir ou circunscrever totalmente aquilo que é (ou foi) comido.
DaMatta chega ao requinte antropofágico de admitir que… o bolo do casamento e o banquete que segue a cerimônia podem muito bem ser vistos como um símbolo dessa “comida” que será a noiva, algo elaborado e, sobretudo, socialmente aprovado pelos homens do seu grupo.
O bolo de casamento pode ser visto mais ainda assim, como quer DaMatta, se apresentar uma configuração antropomorfa ou estatuetas de noivos em seu cume açucarado.
Para o sociólogo Gilberto Freyre, página 349 de Casa Grande & Senzala, o casamento era dos fatos mais espaventosos em nossa vida patriarcal. Festa de durar seis, sete dias, simulando-se às vezes a captura da noiva pelo noivo. Preparava-se com esmero a ‘cama dos noivos’? fronhas, colchas, lençóis, tudo bordado a capricho, em geral por mãos freiras; e exposto no dia do casamento aos olhos dos convidados. Matavam-se bois, porcos, perus. Faziam-se bolos, doces e pudins de todas as qualidades. Os convivas eram em tal número que nos engenhos era preciso levantar barracões para acomodá-los.
Toda essa sorte de coisas a fim de celebrar, nesse eufemismo gilbertiano, “a captura da noiva pelo noivo”.
Já a mulher da rua, essa aí então, tornando ao antropólogo DaMatta,… essa que é a comida de todos, é algo muito diferente, conforme já assinalei acima. Em contraste com a mãe, a virgem e a boa esposa, ela surge como aquela mulher que pode literalmente causar indigestão nos homens, provocando a sua perturbação moral.
O Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa Caldas Aulete informa que a acepção “comer alguém (B|ras.) (chul.) ter secretamente relações carnais com uma mulher. C.f. Comida, 4ª acep.”. O léxico não se refere a relações homossexuais. O Aulete convida a gente a confrontar tal situação sexual com comida. Mais: que uma das acepções do verbo “comer” é ter relações sexuais com alguém, de preferência mulher.
(Pedro Nolasco de Araujo, mestre pela PUC-Goiás em Gestão do Patrimônio Cultural, advogado, membro da Associação Goiana de Imprensa – AGI)