Leide das Neves na memória cultural de Goiânia
Diário da Manhã
Publicado em 23 de outubro de 2015 às 21:27 | Atualizado há 4 meses
No dia 23 de outubro de 1987 foram confirmadas as primeiras mortes em decorrência do acidente radiológico de Goiânia, considerado a maior tragédia doméstica do gênero no mundo. A menina Leide das Neves Ferreira, de apenas 6 anos, e sua tia Maria Gabriela Ferreira, estavam internadas no Hospital Narval do Rio de Janeiro e não resistiram à contaminação. Leide havia ingerido partículas de Césio ao alimentar-se com as mãos sujas do pó, o que levou a contaminação a níveis incontroláveis e inevitavelmente provocou-lhe a morte.
Para conter um risco maior de contaminação, os corpos foram colocados em caixões de chumbo para serem encaminhados a Goiânia. Eles foram enterrados no dia 26 de outubro, em túmulos de concreto. Vizinhos ao Cemitério Parque, que fica às margens da Avenida Marechal Rondon, na região Norte de Goiânia, reagiram à cerimônia com hostilidade. Jogavam objetos nos familiares aos prantos, diante do medo de contaminação e da paranóia criada pela cobertura midiática sensacionalista do caso.
A história foi amplamente retratada pela mídia. Virou tema de filme e até do programa policial Linha Direta da Rede Globo. Por trás da grande repercussão do acidente, a história utópica dos funcionários de um ferro-velho que quebraram a machadadas a capsula que guardava o pó da morte. O brilho azulado encantou os trabalhadores, que por um momento acreditavam ter encontrado um tesouro que os salvaria de todas as dificuldades financeiras. Pouco tempo depois, o Estadio Olímpico, escolhido como cenário para uma triagem de pessoas contaminadas, exibia cenas ao vivo do que parecia ser um filme de terror futurista.
A história de Leide das Neves comoveu o país e a figura da menina acabou tornando-se um símbolo da luta dos cidadãos afetados pelo acidente, em busca de acompanhamento médico adequado. A fundação Leide das Neves foi criada com o papel de dar assistência às vítimas do desastre.
Cultura
Além do impacto físico da abertura da cápsula que continha Césio-137, descartada de maneira inadequada pelo centro médico responsável, deu-se ao longo dos anos um forte impacto do Césio no imaginario popular goianiense. Leide das Neves, por sua vez foi elevada a símbolo cultural da cidade, sendo tema de músicas, poemas e grafitis. Um exemplo disso é a canção ‘Leide das Neves’, presente no álbum Made in GO (1993), da banda HC-137, que lançou um dos primeiros discos de hardcore produzidos no Centro-Oeste. O álbum fala do descaso e do preconceito com as vitimas diretas do acidente, bem como o caos social que ele gerou. “Leide das Neves, você não morreu. Está na memória de quem já sofreu”, diz a música.
O césio e seu azul da morte também serviram de fonte de inspiração para os músicos da banda Vida Seca, também de Goiânia. O grupo é conhecido por produzir seus próprios instrumentos através de material reciclável. Do lixo reaproveitável surge a música sobre o lixo radioativo. No álbum Rua 57, Nº 60, lançado em 2015, duas peças musicais de longa duração refletem de forma instrumental a destruição provocada pelo Césio na cidade.
Como exemplo de poesia, temos a artista Cida Almeida, que publicou no site Overmundo o poema Azul Esgotado. É uma reinterpreta o acidente radiológico através de uma visão sensível e humanizada das vítmas, que foram fisgadas pelo sonho capitalista presente na beleza mortal do azul-Césio. Seguem os treixos: “Num piscar de olhos / O pó / Varrido para dentro dos sonhos da menina / Que tinha nome de princesa de contos de fada / Leide das Neves”.
Ela continua, lembrando não apenas a dimensão do desastre, mas os sonhos daqueles que abriram a cápsula. “No mundo da partícula de luz azul / As bonecas esquecidas dentro da caixa / Dormem o sono de pedra / E velam por ti / Anjos atônitos / Da terra do nunca mais / E era tanto brilho / Iludível brinquedo / O pó de giz letal da pastilha de césio-137 / No escuro da sala / No escuro da vida / Dançava na inocência da menina / Dançava na fantasia do pai / Dançava na impotência da mãe / Dançava na ignorância de todos nós”.