Cotidiano

Crianças que leem poesia

Redação

Publicado em 19 de outubro de 2015 às 21:50 | Atualizado há 4 meses

Ariana Lobo

Quando o assunto é leitura, os brasileiros quase sempre perdem se comparados aos outros países. Uma pesquisa sobre hábitos culturais realizada pela Federação do Comércio do Rio de Janeiro revela que sete em cada dez brasileiros não leram um livro sequer em 2014. Entre os jovens o cenário não muda. A Prova Brasil, o Enem, o Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA), entre outros instrumentos, revelam que somente 5% dos jovens brasileiros têm nível considerado “adequado” de leitura.

E quando falamos de leitura de poesia as estatísticas tendem a se agravar. Frases como “poesia é difícil”, “poesia é chata”, “poesia é ultrapassada” são realidade na rotina da maioria dos professores de literatura. Diante disso, os professores precisam se desdobrar em atividades criativas e dinâmicas para despertar nos alunos o gosto pela poesia.

É o caso de Poliane Vieira Nogueira, 30, professora do campus Anápolis do Instituto Federal de Goiás (IFG), que sempre inclui leitura de poesia em suas aulas. Ela afirma ser complicado pensar em “gosto para poesia” quando a maioria das crianças não têm acesso a livros. “Os livros que a maioria das nossas crianças conhecem estão na escola, pois não temos uma cultura de leitura em casa, a maioria dos pais não leem com seus filhos (e não “para” eles, ler “com” aproxima mais a criança da poesia e lhe dá direito a voz). Em boa parte das famílias reina a televisão, poesia é considerada matéria de escola”, defende.

Ela explica que os professores responsáveis por apresentar a poesia para as crianças, também não leem muito, pois não há tempo com a carga horária que a maioria deles fazem, além de levar muito trabalho para casa. “Muitos professores assumem também não gostar de ler, algo muito difícil de entender, uma vez que a escolha da profissão prevê leitura constante. Se ao longo da vida escolar e da formação docente deste sujeito não for despertado o gosto pela poesia, dificilmente ele conseguirá despertar este gosto nas crianças”.

Coisa de menina

É certo que o gênero poesia acaba sendo prejudicado também por preconceitos que a acompanham como: “poesia é muito difícil”, “poesia é muito sublime” ou mesmo “poesia é coisa de menina”. “Me lembro que quando meu afilhado tinha mais ou menos 4 anos e eu lia poesia com ele, ele dizia que este era o nosso segredo, porque o pai e os colegas podiam achar que era coisa de menina e ele sabia que não era”, recorda Poliane.

Por conta destes esteriótipos criados em torno da poesia, muitas crianças deixam de ler, já que nem todas possuem alguém que “guarde esse segredo”. “Para mim, a infância é a fase em que a poesia mais toca o leitor, as crianças estão abertas para brincar com o poema e o fazem, para elas tudo é novidade, mas é necessário dar a elas o acesso ao livro, apresentar a poesia aos pequenos. O ritmo, as rimas e, principalmente, as imagens poéticas mexem com a imaginação da criança”, explica Poliane.

Papel da escola

Para Poliane, a escola é importante na formação do leitor de poesia, já que dificilmente este encontro se dá em outro espaço. Mas é importante que haja um mediador que facilite este encontro. “Eu tento ser essa mediadora, costumo começar sempre a aula com um poema para que os alunos se acostumem com a linguagem poética e consigam dissociá-la um pouco da prova ou da tarefa escolar, de modo que possam pensar sobre ela desarmados”.

Ela conta que participou de dois projetos de poesia com crianças e jovens: a Oficina de Literatura do IFG que lê textos poéticos com alunos de ensino médio e EJA e realiza saraus com as turmas e a Oficina de Leitura Oral de Poesia em Corpo de Voz, em que além de apresentar poemas focados na performance vocal, também leva a oficina para várias escolas públicas de Goiânia. “Nestes dois projetos não há como não nos surpreender. Ouvimos tanto que os jovens não leem e não gostam de poesia, mas não houve uma turma sequer que não pedia para que retornássemos com mais poesia” declara.

A professora afirma que os preconceitos que envolvem a leitura de poesia e a relação que a escola costuma criar, associando a poesia a uma tarefa escolar, sendo a poesia um texto que precisa ser dissecado e que cabe ao aluno escolher a resposta certa, afasta o leitor da poesia. “Infelizmente, a escola tem realizado um desserviço para a poesia e, ainda assim, é o lugar mais propício para que essa leitura aconteça. Meu afilhado de 9 anos, por exemplo, está em crise com a leitura escolar, não se interessa por ler o que vem da escola, mas os livros de literatura e poesia que tenho em casa, sempre que vai para lá quer ler comigo”.

Papel da família

Não ensinamos ninguém a gostar de ler, ensinamos a compartilhar a experiência da leitura, isso cria laços com os livros e com as pessoas, explica Poliane

Poliane tem um afilhado, Eduardo, que hoje está com 9 anos. Ele é um leitor assíduo de poesia desde bem mais novo, pois a madrinha e os pais sempre leram com ele, o que acabou despertando o gosto pela poesia. “Sempre li poesia com meu afilhado e sempre o presenteei com livros, a mãe também lê com ele, aos poucos ele foi passando a escolher os livros de sua preferência. Costumo levar ele na livraria para que ele escolha os livros que lhe interessa e eu sempre escolho mais um ou dois títulos que eu gostaria que ele lesse”, conta.

Para ela, três coisas são essenciais para que um leitor seja formado. Primeiro: acesso ao livro. A criança precisa pegar, sentir o objeto livro, além de acessar seu conteúdo. Segundo: hábito. Ler com frequência para a criança aumenta o interesse. Terceiro: respeito. “Se lemos para criança como quem ensina, perdemos a cumplicidade, temos que curtir a poesia junto com ela e deixar para a escola o trabalho de ensinar. Não ensinamos ninguém a gostar de ler, ensinamos a compartilhar a experiência da leitura, isso cria laços com os livros e com as pessoas”, explica Poliane.

Ela conta que Eduardo hoje é leitor assíduo de José Paulo Paes. “E agora quase não leio para ele, ele quem lê para mim, lemos um com outro e nos divertimos com isso”.

Exercícios de pensar criança

Eduardo, 9, que hoje é leitor assíduo de José Paulo Paes

Poliane publica frequentemente em sua rede social o que ela chama de “exercício de pensar criança”, com as falas mais curiosas de seu afilhado em relação à poesia e literatura. “Essa é uma forma divertida que encontrei de registrar o pensamento do meu afilhado enquanto ele cresce, a medida que ele fala algo que acho interessante compartilho com meus amigos no facebook e salvo de recordação”, conta Poliane. Ela conta o o que ela considera a história mais linda com poesia que já vivenciou: o encontro de uma criança com um poeta:

“Desde pequeno, entre os livros que eu lia para o meu afilhado, Eduardo, o preferido dele era ‘O menino que carregava água na peneira’, de Manoel de Barros. Carinhosamente, o Eduardo se referia a seu poeta preferido como ‘meu poeta de barro’. Na minha formatura, apresentei meu orientador, o professor e poeta Jamesson Buarque, para o meu afilhado (que na época tinha 4 anos) como poeta, não disse nome nem nada, só disse que era poeta. Ele ficou em estado de admiração e nem respondeu ao poeta que falava com ele. Quando teve certeza que o poeta já tinha ido embora, me perguntou: ‘Madrinha, porque poeta fala com palavras e não fala com poesia?’. Expliquei que poeta era gente de como a gente, mas que escrevia poemas. Não convenci muito. Quase uma semana depois, ele me diz: “madrinha, pergunta para o seu poetinha se ele carrega água na peneira, porque o meu poeta de barro carrega”. Como eu ainda tinha contato com o meu orientador, estava na fase do mestrado, perguntei a ele. O poeta entrou na brincadeira e mandou dizer ao Eduardo que ele não só carregava água na peneira, mas também guardava segredos no bolso. Assim que contei isso para o menino, ele colocou a mãozinha na boca com uma cara de espanto, que logo passou e me respondeu ‘Ih, meu poeta de Barro, cria peixes no bolso, muito mais massa’ e saiu correndo, brincando.

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Outros exercícios de pensar-criança publicados pela Poliane:

“- Madrinha, meu poeta de barro é mesmo de barro?

– Né não, Dudu!

– Era mais divertido se fosse, né!

– Mas ele pode continuar sendo sem ser, não pode?

– Pode.

E ficou sendo.”

– madrinha, cadê aquele seu poeta?

– Qual poeta? Manoel de Barros?

– Esse é o meu poeta de barro, quero saber do seu.

– O meu? (Juro que fiquei esses breves segundo decidindo qual era o meu)

– Aquele da Maria chuvarenta. (Ele adora “Caso Pluvioso” de Drummond)

– Ah! Ele se chama Drummond, vou pegar.

– Oba! Chuva lá fora e chuva aqui dentro.”

Escola deve dar exemplo

Paulo Henrique Pedrosa, 31 anos, gestor escolar da Rede Arco-Íris conta que a leitura e a escrita de poesia (assim como de outros gêneros) é incentivada diariamente nas aulas. “Os professores resgatam antigos hábitos como: carta, telegrama e bilhetes. Os alunos sempre deixam suas mensagens aos pais, colegas e familiares nos painéis ao longo de todo ano letivo, o que resulta em momentos de contos e declamações nos sarais que realizamos”, conta Paulo.

O incentivo constante acabou resultando em um evento nesse fim de semana no qual os alunos expuseram a obra desenvolvida por eles em referência aos escritores goianos escolhidos – Ironita Mota, Célia Jacarandá, Nazareth Cândida, Dóris Reis, Edivânio Honorato e Sônia Ferreira, autores renomados com Cecília Meireles, Ruth Rocha e Vinícius de Morais

“Durante todo o decorrer do ano letivo, os alunos foram estimulados pela leitura dos poemas e contos. A produção de um caderno contendo a releitura da obra escolhida fez com que os eles tomassem gosto pela produção. O contato com os autores goianos durante o projeto estimulou de forma positiva as produções, não somente da releitura mais também de um livro que foi lançado no dia do evento contendo obras, dos próprios alunos”, explica Paulo.

A ideia do evento surgiu da devolutiva positiva dos alunos e pais, e da qualidade das obras apresentadas, “sentimos a necessidade da divulgação para a comunidade local, o que servirá de incentivo para a continuidade de leitura e escrita dos envolvidos e estimulando e sensibilizando os visitantes sobre a importância da leitura e escrita”, conta Paulo.

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Exercícios de ser criança (Manoel de Barros)

No aeroporto o menino perguntou:

– E se o avião tropicar num passarinho?

O pai ficou torto e não respondeu.

O menino perguntou de novo:

– E se o avião tropicar num passarinho triste?

A mãe teve ternuras e pensou:

Será que os absurdos não são as maiores virtudes

da poesia?

Será que os despropósitos não são mais carregados

de poesia do que o bom senso?

Ao sair do sufoco o pai refletiu:

Com certeza, a liberdade e a poesia a gente aprende com

as crianças.

E ficou sendo.

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