Opinião

Um fim de tarde no céu

Redação

Publicado em 27 de julho de 2015 às 23:14 | Atualizado há 10 anos

Era como se o horizonte estivesse avermelhado, com o sol deixando o dia para que a lua chegasse. Um lindo quadro colorido fora da natureza, repleto de beleza, um cenário especialmente arranjado pelo gosto dos espíritos iluminados.

Tudo começa com Silvio Caldas cantando Carinhoso, acompanhado na flauta por nada menos do que Pixinguinha: “Meu coração, não sei porquê/ Bate feliz quando te vê/ E os meus olhos ficam sorrindo/ E pelas ruas vão te seguindo/ Mas mesmo assim foges de mim…”

Em seguida, Jacob, ao som do seu bandolim, improvisa para Elizeth Cardoso interpretar Chão de Estrelas: “A porta do barraco era sem trinco/ Mas lua, furando o nosso zinco/ Salpicava de estrelas nosso chão/ Tu pisavas nos astros, distraída/ Sem saber que a ventura desta vida/ É a cabrocha, o luar e o violão…”

Ainda lusco-fusco, o maestro Tom Jobim, ao piano, de frente para o poetinha Vinícius de Moraes, debaixo de raios coloridos, arranca aplausos com Chega de Saudade: “Vai minha tristeza/ E diz a ela que sem ela não pode ser/ Diz-lhe numa prece/ Que ela regresse/ Porque não posso mais sofrer/ Chega de saudade…”

O violonista Baden Powell solava As rosas não falam, quando aparece Cartola quase cantarolando: “Queixo-me às rosas, mas que bobagem/ As rosas não falam/ Simplesmente as rosam exalam/ O perfume que roubam de ti, ai…”

Elis Regina, com chapéu-coco, emocionou ao levar O Bêbado e a Equilibrista: “Caía a tarde feito um viaduto/ E um bêbado trajando luto/ Me lembrou Carlitos/ A lua tal qual a dona do bordel/ Pedia a cada estrela fria/ Um brilho de aluguel…”

Iracema foi lembrada pelo próprio autor, Adoniram Barbosa, com a sua voz gostosamente rouca: “E hoje ela vive lá no céu,/ E ela vive juntinho de nosso senhor/ De lembrança guardo somente,/ Suas meias e seu sapato,/ Iracema eu perdi o seu retrato…”

O luar ainda alcançou o pout pourri, em formato de seresta, com vozes e composições de Paulo Vanzolini, Ataulfo Alves, Lupicínio Rodrigues, Noel Rosa, Donga, Ciro Monteiro, e Ary Barroso.

O coral iniciou o ataque musical com Juízo Final, de Vanzolini: “No último dia da vida/ Encontrei-me com os meus pecados/ Uns maiores outros Menores/ Mas no geral bem pesados/ Do outro lado somente/ A ingratidão que sofri/ O anjo pôs na balança/ E vestido de branco subi…” Destacando das demais, a voz de Ataulfo Alves puxou Laranja Madura: “Você diz que me da casa e comida/ Boa vida e dinheiro prá gastar/ O que é que há, minha gente o que é que há/ Tanta bondade que me faz desconfiar/ Laranja madura na beira da estrada/ Tá bichada Zé ou tem marimbondo no pé…”

“Esses moços, pobres moços/ Ah! Se soubessem o que eu sei/ Não amavam, não passavam/ Aquilo que já passei/ Por meus olhos, por meus sonhos/ Por meu sangue, tudo enfim/ É que peço/ A esses moços/ Que acreditem em mim…”, de Lupicínio, Esses Moços.

O ritmo subiu, quando Palpite Infeliz, de Noel Rosa, entrou na roda: “Quem é você que não sabe o que diz?/ Meu Deus do Céu, que palpite infeliz!/ Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira,/ Oswaldo Cruz e Matriz/ Que sempre souberam muito bem/ Que a Vila não quer abafar ninguém,/ Só quer mostrar que faz samba também…”

E o primeiro samba não ficou esquecido. Pelo Telefone. Donga, seu autor, também na linha de frente: “O chefe da folia/ Pelo telefone manda me avisar/ Que com alegria/ Não se questione para se brincar/ Ai, ai, ai/ É deixar mágoas pra trás, ó rapaz/ Ai, ai, ai/ Fica triste se é capaz e verás…”

Ciro Monteiro e sua inseparável caixa de fósforos entraram no pout pourri: “Se acaso você chegasse/ No meu chateau e encontrasse/ Aquela mulher que você gostou/ Será que tinha coragem/ De trocar nossa amizade/ Por ela que já lhe abandonou?”

Foi glorificante o fim de tarde no céu, quando, repetidas vezes, de Ary Barroso, entoaram No Racho Fundo: “No rancho fundo bem pra lá do fim do mundo/ Onde a dor e a saudade contam as coisas da cidade/ No rancho fundo, de olhar triste e profundo/ Um moreno canta as mágoas/ Tendo os olhos rasos d’água…”

É, só mesmo em outra dimensão existe coisa tão linda.

 

(Iram Saraiva, ministro emérito do Tribunal de Contas da União)

 

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