Cultura

Além de clássicos da música romântica, Wando deixou maior coleção de calcinhas do planeta

Marcus Vinícius Beck

Publicado em 8 de fevereiro de 2022 às 18:46 | Atualizado há 3 anos

Nem
sei se é cafonice o meu amor, só sei que Wando, sob a efeméride molhada de
obscenidade no ano da graça de 2022, deixou sua coleção de calcinhas há uma
década por conta de uma parada cardiorrespiratória, aos 66 anos, três anos
antes do meia-nove existencial. Com a morte do fogo e da paixão, a música
popular brasileira ficou sem o maior professor sentimental do cancioneiro
romântico. O cantor mineiro, como escreveu o cronista Xico Sá, não nos deixou
órfãos. Fez pior: nos deixou brochas.

Wando encantou na condição de proprietário do maior acervo de calcinha do globo – seu sonho, me diz Xico, em obituário publicado na imprensa, era fazer um museu com as peças íntimas. Improvável símbolo sexual, o artista admitia que, achando-se feio, deslocado dos padrões impostos pela indústria da beleza, levava vantagem por saber tocar violão e falar de amor. “Isso ajuda muito”, afirmava. Ajudou-o tanto que vendeu milhões de discos e a virou referência em matéria de amor.

Com lábios grossos, uiwando “o amor para maiores de 25 anos”, tornou-se sucesso na segunda metade dos anos 1980, quando lançou o hit “Fogo e Paixão”, do disco “Vulgar e Comum é Não Morrer de Amor”. De norte a sul, leste a oeste, os ouvidos mais sensíveis eram incapazes de passarem despercebidos ao eu-lírico, esse filha da puta por excelência, que confessava à mulher amada ser ela luz, raio, estrela e luar: “quando tão louca, me beija na boca, me ama no chão.” A canção foi a maneira encontrada por Wando para declarar-se à ex-esposa Rose, com quem fora casado por 13 anos.  

“Eu cresci ouvindo Wando e ouvindo as pessoas chamando o Wando de brega, mas em todas as festas a gente precisava tocar as músicas dele. Todo mundo se encantava. Sempre o achei extremamente interessante e contraditório, porque ele é um cantor fora dos padrões de beleza impostos socialmente e, mesmo assim, atraía uma legião de mulheres que se identificavam com os fetiches que propunha”, analisa a cineasta Silvana Beline, diretora do curta-metragem “Sujas de Carmim”.

Beline conta a este escriba que começou a pensar no roteiro, no qual mostra a paixão de duas mulheres pelo cantor nascido em Cajuri (MG), uma rica, do Sul, empossada; outra proletária, com poucas posses, daqui do Centro-Oeste, a partir de uma brincadeira: quando Wando morreu em 2012, ela comentava que gostaria de ir visitar o túmulo dele. A ideia foi bem aceita e a cineasta procurou uma amiga professora da Unesp. “Chamei-a pra atuar, ela é uma das atrizes, faz a personagem Helena”, diz.  

“Só que conversamos isso há um tempo, até que falei: ‘agora vou dar um jeito e a gente vai fazer esse filme’. Então teve um processo na elaboração do roteiro e depois no tempo de set.” Embora seja um curta, com apenas 15 minutos de duração, feito entre parcerias, desprovido de dinheiro, sem fomento nem nenhum tipo de financiamento, a ajuda das pessoas que estão no filme foi fundamental para fazer a gangorra da produção girar. E girou, obrigado: é por meio das duas personagens que dimensionamos a amplitude das letras de Wando entre as mais distintas classes sociais.

Bem-humorado, língua afiada, jabá sob a mira de sua metralhadora verborrágica e ao lado do também sagaz cantor Falcão, numa hilária entrevista ao escritor e jornalista Marcelo Rubens Paiva, atestou – que o Brasil era um país brega. “Se você vende mais de 500 mil discos, está atingindo um público que gosta do brega. Quer um exemplo recente? Uma mulher inteligente, que admiro…”. Em seguida, sem tempo para pensar melhor, foi interpelado por Paiva: “Marisa Monte.” Imaginemos, amigos e amigas, o cara cantando “Amor I Love You”? Ele e Falcão?  

“As pessoas rotulam quem é brega. O Caetano Veloso amou vender 1 milhão de discos e só vendeu isso porque gravou uma música do Peninha”, disparou. Além de “Fogo e Paixão”, Wando conseguiu arrebatadores sucessos em sua voz, como “Moça”, com a qual vendera mais de 1,2 milhão de discos, em 1974, “eu quero me enrolar nos seus cabelos, abraçar teu corpo inteiro, morrer de amor e de amor me perder, “Coisa Cristalina, inspirada num amigo viciado em dar um ‘tiro’ em carreiras de cocaína, e “Chora Coração”, criada no dia em que Tancredo Neves morreu.

Sem esquecer, contudo, das obrigatórias em qualquer setlist do amor, a exemplo de “Eu Já Tirei a Tua Roupa”, “Gosto de Maçã”, “O Que Eu Vou Dizer Para o Meu Corpo”, “Aquele Amor que Faz Gostoso” e “Deus Te Proteja de Mim” – clássicos-supremos da música brasileira. “Nelson Gonçalves morreu, Waldick Soriano morreu, Wando morreu e o macho romântico brasileiro não está passando muito bem”, testemunhou Xico Sá, no obituário em que expressou suas impressões sobre a partida de Wando.

Nascido em Cajuri, pequeno município localizado na Zona da Mata, em 2 de outubro de 1945, Wando foi batizado Wanderley Alves dos Reis. Criança, mudou-se com a família para Juiz de Fora (MG). Para o Rio, rumou em 1972 e, na Cidade Maravilhosa, conheceu Oswald Sargentelli, responsável por lhe incentivar a cantar e escrever. No ano seguinte, já estava com disco na praça, “Glória Deus no Céu e Samba na Terra”. Foi nessa época que teve “A Menina e o Poeta” gravada pelo ‘rei’ Roberto Carlos.



“Minha geração era muito bossa-nova, ouvíamos isso, porém também gostávamos de Wando, era um brega maravilhoso” Silvana Beline, cineasta

Politizado
e consciente, Wando marcou presença no Comício Pelas Diretas Já em 1984, na
cidade de Curitiba, capital do Paraná. Durante os anos de ditadura
civil-militar, por óbvio, não haveria um sujeito tão preocupado com o amor
passar despercebido pela censura. Vetaram-lhe “Boca Calada”, cujos versos
“canta meu povo enquanto é cedo, boca calada me causa medo” demostram uma
preocupação com aqueles tempos, e “Jesus, Negro Bonito de Olhos Azuis”, em que
clama para sua salvação.

“Toda a minha geração cresceu ouvindo Wando, mas quando era adolescente achava ele brega. Mas adorava cantar nas festas: minha geração era muito bossa-nova, ouvíamos isso, porém também gostávamos de Wando, era um brega maravilhoso”, recorda-se a cineasta Silvana Beline, que é professora de Direito da UFG. “Em todas as festas tinha Wando, eu já ouvia, não lembro exatamente quando comecei a escutá-lo, mas eu já fiquei muito impressionada com o carisma que aquele cara tinha. Ele conseguia fazer com que as pessoas parassem para escutar sua música.”

Wando
morreu? Só se for para você que não canta no boteco copo-sujo da esquina os
pedagógicos versos deixados pelo cara. Inebriado pela música que ajuda a
lembrar os cabelos da amada espalhados pelo suor do corpo, passo a palavra para
Xico Sá, mais competente que este escriba na arte de amar com a vida inteira: “Na
pedagogia do autor de “Fogo e Paixão”, o macho falhar na alcova era algo
humaníssimo. Coisa que o homem dos tempos enviagrados das ereções artificiais
não parece admitir.”

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