Cultura

Obra reconstrói shows clássicos da música brasileira

Marcus Vinícius Beck

Publicado em 18 de fevereiro de 2024 às 23:12 | Atualizado há 4 meses

Dou play no Spotify, me ajeito na cadeira, Cazuza começa: “Disparo contra o sol/ Sou forte, sou por acaso/ Minha metralhadora cheia de mágoas/ Eu sou um cara”. Inebriado e feliz, beberico o café que está ao meu lado e ouço a segunda estrofe. Reflito: é uma canção envernizada pela história. Tenho dito que o poeta autor de tais versos segue tradição contracultural. Vai de Gregório de Matos a Chacal, de Baudelaire a Allen Ginsberg. “Te chamam de ladrão, de bicha, maconheiro”, vocaliza, no Canecão, em outubro de 1988.

Certas músicas provocam na gente tamanho impacto que se tornam trilha sonora de nossas vidas. Às vezes, pelo teor sociopolítico daquilo que apreciamos, até captam o espírito de um tempo, ou o desbunde do instante, ou se agarram à verdade, como um documento histórico. E tal qual uma magia, para parafrasear a filósofa Eliete Negreiros, retratam sentimentos, emoções, impulsos, pensamentos e ordem sutil no caos que se move em nós.

Cazuza despertava essas sensações, mostra o livro “Os 50 Maiores Shows da Música Brasileira”, em pré-venda no site da editora Belas Letras. Simplesmente enrolou-se na bandeira do Brasil durante a música “Pro Dia Nascer Feliz”, no desfecho da lendária apresentação realizada pelo Barão Vermelho, em 1985, no Rock In Rio. Pairava no ar uma esperança de que o Brasil, enfim, reduziria sua desigualdade social, não mais marcharia rumo ao autoritarismo e, fosse o caso, freiaria qualquer espécie de terraplanismo.


		Obra reconstrói shows clássicos da música brasileira

Cazuza é retratado pelo artista Jonas Santos, em pôster que acompanha obra.

Fotos: Belas Letras/ Instagram

Só que a história dribla nossa imaginação, muitas vezes. Autores de “Os 50 Maiores Shows da Música Brasileira”, os pesquisadores Luiz Felipe Carneiro e Tito Guedes posicionam o leitor na primeira fileira do Canecão no dia 16 de outubro de 1988, quando Cazuza – em fúria antipatriótica – cuspira na bandeira nacional. Um fã arremessou em direção ao palco o símbolo – aquele da tal “Ordem e Progresso”, sabe? – enquanto o artista interpretava “Brasil”, composição assinada por ele e George Israel, gravada no álbum “Ideologia”, de 88.

É um samba-rock áspero – com batuque percussivo e riff marcante na guitarra – pra essa grande pátria desimportante da qual o eu-lírico não se verá livre: “Brasil, mostra tua cara!”. Cazuza se abaixa, pega a bandeira e esfrega-a no corpo. Como Oscar Wilde fizera com os símbolos da Irlanda, disparou um cuspe nela. Óbvio que a atitude rendeu-lhe sérias dores de cabeça, mas o cantor jamais demonstrou arrependimento algum e afirmou que passaria a respeitá-la assim que “Ordem e Progresso” se tornasse algo efetivo na sociedade brasileira.

“Politicamente sou mais John Lennon do que Chico Buarque”, definiu-se Cazuza, numa entrevista publicada após o elepê “O Tempo Não Para” chegar às lojas, em 89. Ao som de “Vida Louca”, de Lobão e Bernardo Vilhena, o artista entra no palco: terno e tênis branco, camiseta por baixo e lenço preso à cabeça. Veio “Boas Novas” e “Completamente Blue”, “O Nosso Amor A Gente Inventa” e “Todo Amor que Houver Nessa Vida”, “Codinome Beija-Flor” e “O Tempo Não Para”, parceira com Arnaldo Brandão, do grupo Hanoi Hanoi.

Dirigido por Ney Matogrosso, foi o melhor show do artista e, para insatisfação geral, a temporada durou só três dias: 14, 15 e 16 de outubro. O cantor estava acompanhado por Nilo Romero (baixo), João Rebouças (teclados), Luciano Maurício (guitarra), Ricardo Palmeira (guitarra), Christiaan Oyens (bateria), Wildor Santiago (saxofone) e Jussara e Jurema Lourenço (vocais). Numa dada altura, já nos braços do público, o artista não se contém: roteiro pro alto, rodopia, joga flores. Ataca com “Exagerado”, manda ver “Brasil” e interpreta “Faz Parte do Meu Show”, numa onda “meio bossa-nova, meio rock’n roll”.

Dom de encantar

Segundo a doutora em filosofia Eliete Negreiros, na introdução de sua obra “Amor à Música” (R$ 70,00), a MPB possui o dom de nos encantar. “Nossa música é dona de uma beleza, de um vigor, de um esplendor únicos”, reflete a pensadora. Ao lermos os três ou quatro primeiros textos, ficamos com a impressão de que é exatamente isso que desejam fazer os pesquisadores Luiz Felipe Carneiro e Tito Guedes com “Os 50 Maiores Shows da Música Brasileira”, obra prevista para chegar às livrarias goianas no próximo dia 1°.


		Obra reconstrói shows clássicos da música brasileira

Capa da obra.

Foto: Divulgação


Organizado em ordem cronológica, o livro contextualiza os shows listados e descreve detalhes em torno dos espetáculos. Traz ainda os bastidores e curiosidades das apresentações que ajudaram a transformar a música popular brasileira, como a vez em que João Gilberto, Tom Jobim e Vinícius de Moraes subiram juntos ao palco no Au Bon Gourmet, na noite do dia 2 de agosto de 1962 – pouco tempo depois, por exemplo, a bossa nova iria se internacionalizar e tanto Tom quanto João passariam mais tempo lá fora do que aqui.

A obra destrincha também uma das primeiras manifestações musicais contra a ditadura militar, ocorrida no dia 11 de dezembro de 1964. Estrelado por João do Vale, Zé Kéti e Nara Leão, o show-protesto demonstra guinada estética e política dada por Nara, que lançara meses antes o elepê “Opinião”. À revista “Fatos & Fotos”, de acordo com Felipe Carneiro e Guedes, a cantora deu um basta à bossa nova. “Chega de cantar para dois ou três intelectuais uma musiquinha de apartamento. Quero o samba puro, que tem muito mais a dizer, que é a expressão do povo”, atacou a artista, rachando a moderna bossa em duas alas.

Contudo, um dos momentos mais importantes relatados pelos pesquisadores fica a cargo do último show realizado por Caetano Veloso e Gilberto Gil antes de partirem para o exílio. A ideia surgiu pela necessidade da dupla em angariar recursos para custear a saída do Brasil, bem como se despedir dos fãs, naturalmente. Nos dias 20 e 21 de junho de 69, em três sessões, Caetano e Gil levaram à emoção e à alegria pelo menos duas mil pessoas, numa plateia na qual se podia ver intelectuais como Jorge Amado e Augusto de Campos.

Em 72, saiu o disco “Barra 69”, cujo áudio foi extraído do espetáculo no Teatro Castro Alves, na cidade de Salvador. Além desse testemunho do tropicalismo, “Os 50 Maiores Shows da Música Brasileira” esmiúça o ápice do synth-pop, com o RPM, em 1986. Há que se destacar ainda Secos & Molhados, Maysa, Gal Costa, Elis Regina, Doces Bárbaros, Ney Matogrosso. E não se pode esquecer dos Paralamas, de Chico Buarque e do Barão Vermelho. Até o elogiado Titãs Encontro, que passou pelo Oscar Niemeyer, integra a lista. São muitos shows.

Os 50 Maiores Shows da Música Brasileira

Autores: Luiz Felipe Carneiro e Tito Guedes

Editora: Belas Letras

Gênero: resenha musical

Páginas: 304

Preço: R$ 199

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