Cultura

Lakecia Benjamin reinventa jazz tradicional com disco místico

Marcus Vinícius Beck

Publicado em 19 de janeiro de 2024 às 23:55 | Atualizado há 4 meses

Esse sax, sax alto, sibila nossa procura existencial: é jazz salpicado com os sabores do funk e do soul! Abro os olhos para o dia claro lá fora e para o presente do indicativo, onde moram os temas, os ritmos e as inflexões executadas pela nova-iorquina Lakecia Benjamin, 41. Aumento, pois, o volume da música, a única que me faz derramar palavras pela página em branco. Estou na cadeira, pés balançando, cabeça meneando: jazzisticamente estimulado!

Há quanto tempo estou aqui parado nessa posição? Sei lá. Mas, bem, se “Phoenix” – o disco que escuto enquanto escrevo – tem uma hora e dez de duração e, como o aprecio pela segunda vez, então faz quase duas horas que me encontro do mesmo jeito, sentado e gingando. Ouço, logo existo e, portanto, sou eu. Sou eu apaixonado pelo tradicionalismo constantemente reinventado, pelo trajeto labiríntico, pelos impasses, pelo silêncio e pelas narrativas resgatadas do naufrágio, tal qual preconizara Júlio Cortázar falando de jazz.

Lakecia precisa ser compreendida como o que é: nome de destaque na cena mundial. Mas seu talento ter sido reconhecido ao acumular quatro indicações ao Grammy neste ano é quase um milagre. Em 2021, retornando a Nova Iorque após se apresentar em Cleveland, o carro conduzido por ela derrapou na estrada, capotou numa área arborizada e foi parar numa vala. Assim que abrira os olhos, toda ensanguentada e com dores no corpo causadas pelas fraturas, alguém lhe puxou para fora e tentaram arrombar o veículo, tirando-a de lá.

Horas depois, para dar conta das múltiplas pancadas, a saxofonista foi parar numa mesa cirúrgica: três costelas quebradas, escápula dilacerada, tímpano perfurado, danos neurológicos, mandíbula estraçalhada. Como continuar tocando? “Eu realmente acho que tive sorte de estar tocando a música de Coltrane. Essa energia e essa mensagem; era isso que eu deveria estar fazendo”, declarou Lakecia, durante entrevista publicada no “New York Times” pelo jornalista musical Marcus J. Moore, autor da obra “Kendrick Lamar Biography”.


		Lakecia Benjamin reinventa jazz tradicional com disco místico

Lakecia precisa ser compreendida como o que é: nome de destaque na cena mundial.

Foto: Divulgação


Antes do acidente, Lakecia havia lançado o disco “Pursuance: The Coltranes” (2020), com o qual prestou homenagem ao lendário John Coltrane e à não menos brilhante Alice Coltrane, esposa do autor daquele “Love Supreme”. Nas 13 músicas, o que escutamos é Lakecia tocando composições acompanhadas por um grande elenco de instrumentistas, incluindo um casal que trabalhou com os Coltrane, nos anos 60. Alguns temas se aproximam da força espiritual das versões originais e outros tomam a liberdade de trazer ideias contemporâneas.

“Syeeda’s Song Flute”, por exemplo, possui uma elegante camarada de piano elétrico construída pelo músico David Bryant indo em direção oposta ao contralto de Lakecia, uivando enquanto Ron Carter e Darrell Green tocam seus ritmos excitantes no baixo. Já “Spiral” radicaliza ao desenhar em nossas cabeças um cenário interessante para dançarmos salsa. Contudo, isso não chega nem aos pés de “Central Park West”, que exibe o clássico ritmo jazzístico aliado ao hip hop e faz a potência ir subindo aos poucos nessa paisagem.

Além dos temas consagrados por John Coltrane, há dois hinos – “Walk With Me” e “Going Home” – executados para celebrar a obra de Alice. Quando John morreu, em 1967, ela se mudou para um monastério localizado na Califórnia, Costa Oeste dos Estados Unidos. Por lá, dedicou-se ao estudo da filosofia indiana e, posteriormente, gravou peças nas quais revelava toda sua devoção ao divino. É uma música sublime, como os blues rurais tocados para expurgar a dor que virou a base discursiva e sonora do urbanizado jazz, nos anos 1910.

Se Flaubert afirmava que o artista deveria enlouquecer na arte ou não seria nada, William Blake acreditava no excesso como destino à sabedoria. Um deles, o primeiro, não se mostra tão bom assim no assunto e o outro, o segundo, pode até render boas histórias, porém costuma ficar pelo caminho, fodido. Já Lakecia Benjamin prefere progredir, como seu ídolo John Coltrane, mas sem afastar-se a ponto de não conseguir ver o que os outros estão fazendo. Seu último disco, “Phoenix”, lançado no ano passado, agradece Coltrane pela vida.


		Lakecia Benjamin reinventa jazz tradicional com disco místico

Novo disco da instrumentista tem participação da filósofa Angela Davis.

Foto: Divulgação


Inquieto e excitante, o álbum abre com “Amerikkan Skin”, que nos apresenta ao som de um ambulância e a voz da filósofa Angela Davis declamando versos. Pode-se escutar também conjunto labiríntico de arranjos. Lakecia queria, em vez de começar de forma convencional, levar o público a um estado de espírito, do tipo que oscilasse do frenesi ao frenético, lembrando a mesma agitação que ela sentiu quando conseguiu pôr os pés para fora do carro destruído no acidente: é o recomeço, o ritmo da vida reiniciada, o improviso da existência.

Em 13 faixas, além de Angela Davis, “Phoenix” traz a poeta Sonia Sanchez, artista ligada ao Movimento das Artes Negras, nos anos 50. Há que se reconhecer as notáveis contribuições ao disco realizadas por Patrice Rushen, pianista e cantor de rhythm and blues, e do saxofonista Wayne Shorter, uma das maiores lendas do jazz, falecido em 2023. E, com isso, destrincha-se as nuances da cultura afro na sociedade e enaltece a relevância das mulheres para a arte produzida no século 20, o que sustenta Angela em “Amerikkan Skin”.

“A esperança revolucionária reside precisamente entre as mulheres que foram abandonadas pela história. Eu realmente acredito, e os homens deveriam aplaudir isso, que esta é a era das mulheres”, preconiza Angela. A própria história no jazz construída por Lakecia resume esse pensamento. Quando falou a um professor na escola que gostaria de tocar sax mesmo sem saber bem o que era, houve um ato transgressor da parte dela, pois há poucas mulheres nesse estilo. Lakecia Benjamin se formou no Harlem School of the Arts, em Nova Iorque. Aquele sax, sax alto, sibila nossa procura existencial: é o milagre do jazz!

Phoenix

Artista: Lakecia Benjamin

Gênero: jazz contemporâneo

Faixas: 13

Disponível no Spotify

Grammy ocorre

em 4 de fevereiro



Leia também

Siga o Diário da Manhã no Google Notícias e fique sempre por dentro

edição
do dia

Impresso do dia

últimas
notícias