Millôr Fernandes jogou em todas as posições da palavra
Marcus Vinícius Beck
Publicado em 13 de agosto de 2023 às 23:00 | Atualizado há 2 anos
Millôr Fernandes, jornalista, desenhista, artista plástico, tradutor, poeta e dramaturgo, descortinou nosso País nas suas frases cirúrgicas. Dizia, por exemplo, que o Brasil não passava de filme pornô com trilha sonora bossa novista. Esbravejava contra a psicanálise (“psicanalista é um terapeuta que está sempre a favor da doença”). E, machista incorrigível, redarguia em defesa de que “o melhor movimento feminino ainda é o dos quadris”.
A nuance frasística milloriana, bem ou mal, representa o contexto brasileiro. Sua máxima sobre liberdade de imprensa – “imprensa é oposição. O resto é armazém de secos & molhados” – tem sido repetida à exaustão por pessoas que sequer medem palavras antes de vilipendiar o jornalismo profissional. No entanto, o aforismo saiu, em 1970, nas páginas libertárias de “O Pasquim”. Naquele tempo, vivia-se sob temor de que o céu carregado descambasse para tempestade, com trovoadas à vista e toda sorte de horror sociopolítico.
Millôr começou a labutar em jornal muito cedo, antes dos 14 anos, sem que soubesse os motivos pelos quais, definido como humorista, escreveu e desenhou em periódicos por sete décadas. Foram 14 anos na revista “Veja”, seis no “Pasquim”, 10 na “IstoÉ”, oito no “Jornal do Brasil”, mais um bocado deles na “Tribuna de Imprensa”, outros tantos no “Correio da Manhã” e também neste Diário da Manhã. Esse tempo todo, se não lhe aprimorou o talento, serviu para burilá-lo, como quem aperta parafuso no chão de fábrica até virar o melhor.
Nas Redações, aprendeu inglês e, anos depois, traduziu para o português Shakespeare – a editora L&PM, aliás, anuncia o relançamento da versão de “Hamlet” vertida à nossa língua por Millôr. Debruçou-se ainda sobre o texto de Molière e Brecht. Em outras palavras, tornou-se figura pública única no Brasil e via o humor sendo “a quintessência da seriedade”, como gostava de resumir, não sem antes ser alvo da censura e, brilhantemente, zombar dela por meio de crônicas carregadas em cunho social, ou nonsenses, se fosse o caso.
Engano cartorário
Filho do Méier, bairro localizado na zona norte do Rio de Janeiro, o artista veio ao mundo em 16 de agosto de 1923. Só foi registrado, contudo, em 25 de maio do ano seguinte. Houve ainda outra confusão que passou ao folclore milloriano: o nome. Os pais queriam chamá-lo de Milton, porém – ao escreverem o batismo à mão – acabou por ser assimilado no cartório como Millôr. Assim que descobriu o engano cartorário, quando estava com 17 anos, já homem de Redação, decidiu adotar a nomeação de seu Francisco e dona Maria.
Pai e mãe se foram cedo, e a vida órfã, afirmava, lhe fez ser ateu. Era “a paz da descrença”. “Você nunca viu 10 mil incrédulos invadirem o país de outros 10 mil incrédulos para impor sua descrença”, teorizou, anos depois, para fundamentar sua posição anticristo. Intelectual polivalente, Millôr se iniciou na atividade reflexiva tomando gosto pelos quadrinhos, para os quais, já referência na esfera pública brasileira, disse ser sua “maior influência intelectual”.
Desenhista profícuo, militou tanto pela palavra quanto pelo traço, ao qual o viés frasista caiu bem. Oito mil charges e tiras do artista pertencem ao Instituto Moreira Salles (IMS) e, parte delas, ficará exposta para público no site da instituição durante o centenário. “Millôr era um homem organizado e metódico, guardava grande parte de seus desenhos originais em volumes encadernados e reuniu toda sua produção publicada em jornais e revistas”, revela o IMS, num comunicado em que apresenta as artes gráficas criadas pelo versátil jornalista.
Millôr jogou em todas as posições. Foi do autorretrato à crítica da vida brasileira, passou pelas relações humanas, demonstrou o prazer de desenhar e compartilhou a importante produção do Pif-Paf, seção que manteve na revista “O Cruzeiro”, entre 45 e 63. Mas trabalhava na publicação editada por Frederico Chateaubriand desde de 38, ano no qual um anunciante esqueceu de enviar quatro páginas de publicidade e o jovem foi designado a preenchê-las. Nascia aí o pseudônimo Vão Gogo, que ganhou a coluna “Poste Escrito”.
Era período de efervescência editorial jamais experimentado na imprensa brasileira. Só por ter feito parte do time que comandava “O Cruzeiro”, por exemplo, Millôr tinha garantido espaço na história. Seguindo a tradição humorística de Machado de Assis (cujo tom estilístico-sarcástico espelhava o Brasil do século 19), o “guru do méier” cimentou a estrada pela qual trafegariam, a partir dos anos 70, gerações importantes de jornalistas-humoristas, como o desbundado José Simão e, mais recente, o politizado Gregório Duvivier.
Tradução
Além do intenso labor jornalístico, o artista se aventurou pelo ofício da tradução, trazendo para o português 74 obras teatrais, dentre as quais a já mencionada “Hamlet”, de Shakespeare, “O Jardim das Cerejeiras”, de Tchekhov, “Assim é se lhe Parece”, de Pirandello, e “Antígona”, de Sófocles. A primeira peça, “Uma Mulher em Três Atos”, estreou em 53. Com o golpe de 64, defensor do pensamento livre e discípulo da máxima iluminista de Voltaire (“discordo do que você diz, mas defenderei até a morte seu direito de dizê-lo”), viu que precisava se insurgir contra o regime ditatorial instaurado no Brasil pelos militares.
Sob o sugestivo título “Liberdade, Liberdade”, escrito a quatro mãos com o escritor Flávio Rangel, a peça se transformou num clássico do Teatro de Resistência. Havia na obra estrutura dramática costurada por pequenas frases pinçadas da literatura universal. Isso se misturava às piadas corrosivas de Millôr e Flávio. Embora tenha sido definida à época como um show, e não um espetáculo teatral propriamente dito, o texto se revela – aos olhos de hoje – importante para a resistência das artes cênicas nesse triste período histórico.
O artista riu dos ditadores durante os anos em que escreveu no “Pasquim”. Mas não seguia grupos ideológicos, como fazia questão de dizer. “Não sou ligado a grupos, já disse que não me dou bem com classes, só com indivíduos”, disse ao “Opinião”, semanário à esquerda, que bateu de frente com a ditadura. No entanto, idiossincrático, desdenhou de Antonin Artaud, desconfiou de Zé Celso Martinez Corrêa e, mesmo admirador de Bernard Shaw, zombou do feminismo. Millôr Fernandes morreu em 27 de março de 2012, em Ipanema, Rio de Janeiro. A L&PM promete relançar as obras do artista, como “A Bíblia do Caos”.
Frases sagazes de Millôr
“Nunca ninguém perdeu dinheiro apostando na desonestidade.”
“Brasil, condenado à esperança.”
“Brasil; um filme pornô com trilha de Bossa Nova.”
“Todo homem nasce original e morre plágio.”
“O dedo do destino não deixa impressão digital.”
“O melhor do sexo antes do casamento é que depois você não precisa se casar”.
“Tudo na vida tem uma utilidade – se não fosse o mau cheiro quem inventaria o perfume?”
“Voto de pobreza, obviamente só pode ser feito por rico”.
“Errar é humano. Botar a culpa nos outros também”.
“O problema de ficar na fossa é que lá só tem chato”.