Harper Collins reedita Bukowski, maldito da literatura do século 20
Marcus Vinícius Beck
Publicado em 29 de julho de 2023 às 18:35 | Atualizado há 2 anos
Charles Bukowski marginalizou a literatura norte-americana com o alter ego Henry Chinaski, protagonista do romance “Factotum”, um clássico das letras malditas. Lançada pela primeira vez em 1975, a obra acaba de ser reeditada pela Harper Collins, com tradução assinada por Emanuela Siqueira, posfácios escritos pelo pesquisador Marcus Vinicius Santana Lima e comentários críticos feitos pela escritora Clara Averbuck.
“Factotum”se passa durante a Segunda Guerra Mundial, nos anos 1940. A única expectativa de Chinaski é lutar no front e, ao ser considerado inapto para o serviço militar, passa a viver em quartos de hotéis vagabundos pelos EUA enquanto bebe vinho assistindo seu dinheiro ir embora. “Durante o dia, eu fazia caminhadas longas e lentas. Sentava por horas, encarando os pombos. Comia só uma vez por dia para o dinheiro durar mais”, descreve, no capítulo 2.
Nascido na Alemanha em 1920, Bukowski se mudou para Los Angeles, nos Estados Unidos, ainda criança. Na cidade dos anjos (mais para demônios, no caso dele), viveu até 1994. Uma leucemia lhe tirou a vida. Seus livros retratam um lado da sociedade estadunidense renegado pelo american way of life. Em “Misto Quente”, por exemplo, Chinaski lida com um pai agressivo num cenário de caos social durante a Grande Depressão.
A recessão econômica atingiu o seio do capitalismo financeiro, a partir de 1929, estendendo-se pela década de 1930 e só cessando com o New Dell do então presidente Franklin Roosevelt. Romance de formação com verniz autobiográfico, “Misto-Quente” saiu em 1982 e, desde a primeira linha, prende atenção do leitor. O texto é simples, sem rodeios, ou literatices. Busca-se a dignidade, a liberdade é perseguida ali. Um soco nos é dado.
Se “Misto Quente” narra as agruras de Chinaski durante a infância, “Factotum” descreve as motivações do personagem em migrar entre cidades norte-americanas. Logo na abertura, mais precisamente na primeira frase, a voz narrativa diz que chegara a Nova Orleans, debaixo de chuva, às cinco da manhã. “Fiquei sentado na rodoviária por um tempo, mas aquela gente me deprimiu, então peguei minha mala e comecei a andar na chuva mesmo.”
Para a nova edição, Harper Collins conta que a obra ganhou nova identidade visual. A cada mês, um livro do escritor maldito será publicado – ao todo, são mais de 40. O primeiro deles, “Factotum”, já está nas livrarias. Em agosto, a editora põe nas prateleiras “Pulp”, último escrito pelo velho safado, lançado em 1994. Bukowski muda, pela primeira vez, o narrador: Nick Belane – um tipo azarado, com visão machista e até mesmo preconceituosa – é surpreendido por uma mulher, “glorioso barato da carne”, como diz a tradução da L&PM.
Ecossistema literário
Bukowski é assunto delicado no ecossistema literário. A Harper Collins, por exemplo, acrescenta ao texto notas explicativas, em que são apontadas questões como a sexualização das mulheres, comentários de cunho machista e descrições sexistas, além de passagens racistas ou visão depravada da humanidade. Ou seja, o dirty old man entrou no escrutínio permanente do feminismo, numa tentativa de problematizar seus romances, poemas e contos. E discutir, com profundidade, sua caracterização de latinos, negros e mulheres.
Isso fica evidente, de fato, no posfácio de “Factotum”, quando a escritora Clara Averbuck relembra a sensação que teve ao revisitar a obra bukowskiana 20 anos depois de lê-la pela primeira vez. No entanto, em vez de cancelar o escritor ou tê-lo como persona non grata no seu panteão literário, Clara evita brigar com os fatos. Diz, numa postagem no Twitter, que viveu 42 anos para defender Charles Bukowski. “Me diz um homem nascido há 100 anos que não seria um misógino”, aponta a autora, fã do autor desde o início da vida adulta.
À maneira de Louis-Ferdinand Céline (um nazista convicto, apesar de ter escrito “Viagem ao Fim da Noite”) e Antonin Artaud (poeta surrealista e anarquista de fé, dado como desvairado pelos desvairados), Bukowski nunca escondeu a predileção que tinha pela prosa coloquial de Céline, ao ponto de homenageá-lo em entrevistas ou poemas, e demonstrava afinidade com o Artaud, um artista para o qual a sociedade imputava a peche de louco. E, acima de tudo, Buk situa-se como transgressor na tradição iniciada por Georges Bataille.
Segundo o pesquisador Marcus Vinicius Santana Lima, o literato Henry Charles Bukowski se esforçou em “Factotum” para construir personagens que tivessem lastro com a realidade na qual ele, Buk, estava inserido. “A sociedade pôde lhe fornecer elementos de criação literária que tem a ver com as características da marginalidade social dentro do processo de industrialização norte-americana”, contextualiza o professor, que leciona na Universidade Federal do Vale São Francisco e assina o prefácio da edição feita pela Harper Collins.
É preciso levar em consideração que a linguagem adotada por Bukowski vem da rua. As misoginias, presume-se, possuem amplo leque de equivalências em português, como se vê na variedade de expressões para se referir ao órgão sexual feminino: vagina, buceta ou xoxota. A respeito de palavras que carregam conotação racista, aí são outros quinhentos. “Primeira vez que traduzo um cara pensando um projeto feminista”, conta a tradutora Emanuela Siqueira, doutoranda pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), em post.
Além de “Factotum” e “Pulp”, Bukowski escreveu os romances “Cartas na Rua”, “Hollywood”, “Misto Quente” e “Mulheres”, este último traduzido à L&PM pelo escritor Reinaldo Moraes nos anos 1980. A tradutora Emanuela Siqueira conseguiu, além de apontar os aspectos problemáticos, modernizar o texto. Bukowski é um autor sarcástico, de vocabulário enxuto, bem como de corpo, pústulas, úlceras, fluidos, suor, sêmen e sangue, como descreveu o jornalista Thomas Stélandre, no “Libération”. É preciso problematizá-lo.
Dois lançamentos de Bukowski
Factotum
Charles Bukowski
Romance
Harper Collins
R$ 69,90
Pulp
Bukowski
Romance
Harper Collins
R$ 69,90