Globo Livros lança nesta segunda “Outra Autobiografia”
Marcus Vinícius Beck
Publicado em 22 de maio de 2023 às 02:38 | Atualizado há 2 anos
Se Rita Lee demonstrava ferino senso de humor nas letras, a sinceridade permeou também o lado escritora da artista, que lança hoje “Rita Lee: Outra Autobiografia” (R$ 44,90, e-book, e R$ 64,90, impresso) pela editora Globo Livros. O texto se concentra na vida de Rita durante a batalha travada por ela contra o câncer, doença descoberta em 2021, ano em que tomou conhecimento de ter tumor no pulmão, até o último dia 8 deste mês, quando deu seu último suspiro ainda entre nós.
Há uma justificada ansiedade em torno de “Outra Biografia”. Rita nunca evitou lidar com temas tabus: narrou em “Rita Lee: Uma Autobiografia” violência sexual que sofrera aos seis anos, ao ser penetrada por um homem com chave de fenda, e abriu o jogo sobre os desafios de enfrentar doença agressiva. Como se não bastasse essas duas incursões pelo universo literário, escreveu para o público infantil, publicou contos e burilou poemas, alguns dos quais ilustrados por Laerte – fã número um da cantora nascida em 31 de dezembro de 1947.
Ou seja, acima de tudo, Rita era uma artista que amava as palavras. Com elas, avisou que o namorado lhe dava água na boca, debochou daqueles que acreditavam ser esse tal de roque enrow um sujeito problemático e alertou que tudo vira bosta. Também demonstrou habilidade para brincar com a língua portuguesa, a exemplo do enigmático verso “se a Deborah Kerr que o Gregory Peck”, bem como ensinou que, se amor é livro, sexo é esporte.
Últimos anos
Assim que lançou “Rita Lee: Uma Autobiografia”, a cantora marcou, de certo modo, um despedida da persona Rita Lee, roqueira psicodélica nos anos 60, depois renascida stoniana na década de 70, com cabelos loiros na fase Mutante, de cor que lembra fogo posteriormente, maçãs do rosto imponente, verve feminista, tiradas inteligentes e engrançadas. O humor, se bem feito, ajuda a semear o espírito crítico e, como consequência, a pôr sob escrutínio permanente os valores que regem a sociedade. E Rita, bem, Rita é chefe nesse departamento.
Até que, sendo a mulher modesta que sempre foi, Rita entendia não ter mais aquela vida agitada do passado. Afinal de contas, havia se aposentado dos palcos, então seria justo esperar mais o quê? “Achei que nada mais tão digno de nota pudesse acontecer em minha vidinha besta. Mas é aquela velha história: enquanto a gente faz planos e acha que sabe de alguma coisa, Deus dá uma risadinha sarcástica”, diz a artista, na “Outra Autobiografia”.
Para sorte geral e felicidade da nação, Rita Lee tomou notas. E tudo está lá: a descoberta do tumor (“imaginava que fosse voltar para casa naquele mesmo dia; deveria ser uma bronquite e um remedinho daria conta de me deixar nos trinques”), a enfermeira que achou por bem apelidar de “Sininho” (“parecia uma fadinha se comparada às outras enfermeiras, todas altas e fortes”) e a franja que, ao cortá-la, sentiu-se pelada (“é a mesma sensação de estar pelada na Avenida Paulista”). A cantora foi roque enrow até o final da vida.
Seu texto ganha vida no papel com a mesma dicção notada nas entrevistas, como a sugestão dada a ela pelo Estadão de entrevistar o marido, Roberto de Carvalho, que faria o mesmo com Rita Lee. Ou, para ficar no metiê já citado neste texto, as letras de música – verdadeiras poesias, com refinamento estético, arrojo lexical e mudança no eu-lírico, como se observa em “Flagra” (“minha garota é Mae West”) e “Papai me Empresta o Carro” (“tô precisando dele pra levar minha garota ao cinema”). Esse tom debochado é um antídoto contra a caretice.
Despedida de Goiânia
“É um clichê na vida de roqueiro encher a cara, ser preso, fazer escândalo, morrer de overdose, entrar e sair de hospício, virar doente terminal, ufa! Puxa vida, a única droga que uso hoje é o Marlboro. Será possível que não vão me deixar em paz nunca?”, disse ela à “Rolling Stone”, insatisfeita quando parte da imprensa insistia em se lembrar dela como uma junkie doidona, não uma “tropicalista da gema”, revolucionária e, em todos os sentidos, brilhante. Só que Rita Lee, no final das contas, dava de ombro: “continuarei fazendo o que me der na telha”.
Fiel a essa cartilha, Rita fez o que lhe deu na telha durante sua última passagem a Goiânia, no Jaó Music Hall, em 2010. Ela trazia para cá a turnê “Etc..” No show, cobrou providências do poder público ao saber que o Zoológico de Goiânia, o Zoo Gyn, estava fechado por causa da crise instaurada após morte de 81 animais. Falou aos fãs que iria fazer uma visita ao espaço. Mas ao tentar entrar lá, no dia seguinte, foi barrada. Rita Lee era o máximo.