Cultura

Vivian Gornick lembra importância do flâneur em ‘Uma Mulher Singular’

Marcus Vinícius Beck

Publicado em 13 de maio de 2023 às 13:52 | Atualizado há 2 anos

É uma mulher singular: Vivian Gornick, 87, carrega nas palavras o peso de ser lenda. E tornou-se uma ao escrever sobre amizade e casamento, na condição de filha que lembra do apartamento em que morava com a mãe e da mulher agora sozinha em Nova Iorque, como uma escritora flanando pelas ruas da metrópole e descobrindo que orgasmos lhe deixavam nas nuvens – ainda que, embora sublime, o sexo não fosse lugar onde morasse. 


Da primeira à última linha, seu texto dita a cartilha dos afetos ferozes. Há situações nas quais descreve suas lutas e seus fracassos com tamanha franqueza que parece ser a vida uma gangorra amarga. As dores do amor, o cara que queria induzi-la a fazer sexo anal, as incongruências do trabalho, mas também a mulher que luta para se firmar independente, as conversas com o amigo gay Leonard, a rua resgatando-lhe do isolamento, as calçadas desenvolvendo-lhe a calidez do intelecto. Gornick não escreve, desenha as relações.


Autorretrato


Se pinta com palavras um autorretrato feminista, também se vale no récem-lançado “Uma Mulher Singular” (Todvia) de uma cartografia sentimental para criar mapa de ritmos, encontros causais e amizades que se transformam ao sabor da cidade ao fundo. A cada passeio pelas ruas de Manhattan – com a mãe ou não -, Gornick observa o mundo ao seu redor. “O modo como a vida se apresenta é inevitavelmente o modo como a vida é vivida”, reflete a autora, utilizando-se do foco narrativo subjetivo para descrever a realidade. 


Como jornalista – trabalhou no jornal “The Village Voice” -, Vivian Gornick cobriu os eventos sociais que marcaram o final dos anos 60 e início da década de 70, quando acontecia a chamada Segunda Onda do feminismo. É possível encontrar no texto gornickiano semelhanças estéticas com a prosa jornalístico-ensaística de Joan Didion, cujo “Rastejando Até Belém”, publicado pela Todavia, tornou-se um clássico da auto-ficção. As duas são contemporâneas: Didion entrevistou Jim Morrison, Gornick assistiu a contracultura in loco.


“Passei quase dez anos, depois de acabar a faculdade, batendo cabeça do santo graal: Amor com A maiúsculo, Trabalho com T maiúsculo. Eu lia, escrevia, ia para a cama. Ficava dez minutos casada, fumava maconha por cinco minutos”, recorda-se Gornick, como que se estivesse criando uma colagem da formação feminista moderna. Energética e animada, batia perna pelas ruas de Nova Iorque e, sem direção ou ideias, perambulava pela Europa. 


Para a escritora, por alguma razão, nada era o que deveria ser. Começar a trabalhar? Não conseguia imaginar de que forma e, desnecessário dizer os pormenores, não conseguia dar com “homem certo”. “Com o tempo, fui tomada por uma lassidão. Era como se estivesse adormecido em pé e precisasse ser despertada”, lamuria-se. Melhor livro de memória dos últimos 50 anos, na visão do “New York Times”, “Um Mulher Singular” deve ser lido como itinerário da autodescoberta, em que – ao fundo – sente-se a aspereza da metrópole e seus sons urbanos e seu orgulho típico de cidade cosmopolita, mas que oferece miríades afetivas. 


Sem flâneur, não há solução. Nascida em junho de 1937, no Bronx, Nova Iorque, Gornick se notabilizou na história da literatura americana como memorialista, porém é influente crítica cultural. Nos ensaios assinados por ela, apresenta argumentos que foram compreendidos pelo mainstream literário mundial, mas ninguém põe em cheque que sejam óbvios, como óbvia é a qualidade de seu texto. “A ideia do amor como um meio de iluminação – tanto na literatura quanto na vida – agora surge como anticlímax”, atesta.


Sim, a palavra guia a vida de Vivian Gornick. Tornou-se repórter do “Village Voice”, em 1969, jornal influente na esquerda americana fundado por Dan Wolf, Edwin Fancher e Norman Mailer, nos anos 1950. Logo depois disso, foi designada a cobrir o movimento feminista. E, pouco a pouco, começou a escrever críticas para o Voice e o “The Nation”. Quando as relações entre homens e mulheres mudavam numa velocidade de foguete, ela registrou essas mudanças em sua própria literatura. Se funcionou? Ô, se funcionou…. 


Aos olhos dos leitores, Gornick desenvolveu algo que se pode chamar de “crítica pessoal”, um estilo de jornalismo em primeira pessoa (litério) que se baseia na tradição de ensaístas, como William Hazlitt e Virginia Woolf, ao mesmo tempo em que não se distancia do testemunho subjetivo. Seja como for o livro ou o texto que estiver trabalhando, a escrita gornickiana se baseia na experiência que possui ao seu dispor, como fez em “Emma Goldman: Revolution as a Way of Life”, biografia da anarquista que vivera entre 1869 e 1940. 


Autoficção


Desde o Nobel vencido pela escritora francesa Annie Ernaux em 2021, a autoficção tem despertado simpatia nos leitores. O livro mais badalado de Ernaux, “Os Anos”, surge com pretensão de criar novo gênero literário, ao misturar autobiografia e precisão estilística para mesclá-los à História, porém esse também é o estilo de Vivian Gornick e Joan Didion. Ainda assim, embeleza-se com a maneira na qual Ernaux entrelaça recordações pessoais (como relação com a mãe e suas relações amorosas, por exemplo) às transformações sociais. 


Dentre elas, as mudanças comportamentais, o nascimento da sociedade de consumo, a virada do milênio, o 11 de Setembro e as inovações tecnológicas. No caso de “Os Anos”, o que o leitor percebe, na linha miúda da primeira frase, que se trata de um mergulho na memória dos anos 70. “É importante para mim continuar a viver e a escrever, disse Ernaux, durante passagem pela Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), no ano passado. 


Se Ernaux e Gordinick querem escrever, o mundo tem mais é de aplaudi-las, pois vira um lugar menos emburrecido quando se lê a ex-repórter do “The Village Voice” caminhando pelas ruas de Manhattan, conversando com pequenos comerciantes, trocando ideias com pessoas em situação de rua e ouvindo as travestis. O mesmo se diz da Nobel. A boa literatura, aliada à beleza proporcionada pela forma, precisa respeitar o ar das ruas. 


Uma Mulher Singular


Vivian Gornick


Gênero: autoficção


Editora: Todavia


Preço: R$ 64,90


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