Cultura

Por que Hannah Arendt se ofereceu para cobrir julgamento de Eichmann

Adriano Correia/ Especial para o DM

Publicado em 3 de maio de 2023 às 23:25 | Atualizado há 2 anos

Hannah Arendt, ao responder às perguntas do jornalista Samuel Grafton – no contexto da repercussão da publicação de seu livro reportagem Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal, em uma entrevista de 1963 cuja publicação ela acabou proibindo – acrescentou uma pergunta às feitas por ele e a respondeu em primeiro lugar: “por que eu, uma escritora e professora de filosofia política que nunca tinha feito um trabalho como repórter, quis ir a Jerusalém para o julgamento de Eichmann?”. Ela respondeu que, para além do “fato óbvio” de ser uma das “sobreviventes”, suas motivações eram as seguintes: “queria ver com meus próprios olhos um dos principais culpados em carne e osso”; tinha interesse sobre “as possibilidades de se fazer justiça por meio de nosso sistema legal e nossas instituições legais quando confrontados com este novo tipo de crime e de criminoso”; e “eu penso há muitos anos – trinta, para ser específica – a respeito da natureza do mal. E o desejo de me expor – não aos atos, que, afinal, eram bem conhecidos, mas ao próprio malfeitor – foi provavelmente o motivo mais poderoso em minha decisão de ir a Jerusalém”.


Arendt já era uma pensadora bastante conhecida na cena intelectual estadunidense e europeia quando se ofereceu como repórter para cobrir o julgamento de Eichmann em Jerusalém. Ela já havia publicado Origens do totalitarismo (1951), que a tornou bastante reconhecida mundo afora, e A condição humana (1958), que imediatamente provocou notável impacto no meio acadêmico da filosofia e da ciência política, além de interessados por teoria política em geral. Além disso, ela publicava há mais de quinze anos intervenções nos debates políticos gerais nos EUA e também sobre “política judaica”, incluindo o debate em torno da fundação do Estado de Israel, no qual defendeu sempre a solução de um Estado binacional. 


Quando ela se apresentou a William Shawn – editor da revista The New Yorker, já na época, como ainda hoje, uma das mais importantes na cena cultural estadunidense –, se oferecendo para cobrir o julgamento como repórter, ele ficou entusiasmado com ter “uma correspondente tão ilustre e bem informada”59. Karl Jaspers, orientador de sua tese de doutorado, amigo e principal interlocutor direto dela nos debates sobre as questões jurídicas do Caso Eichmann, temia que o julgamento a perturbasse e também a avaliação crítica dela, recomendando que se manifestasse o mínimo. Mary McCarthy, renomada escritora estadunidense e uma de suas amigas mais próximas, considerou a notícia de que Arendt iria acompanhar o julgamento “maravilhosa e estranha”, despertando “aprovação e receio”61. 


Arendt estava presente em Jerusalém quando o julgamento começou, no início de abril de 1961, ocasião em que viu Eichmann pela primeira vez. Já nas primeiras cartas em que reportou suas impressões iniciais, poucos dias após ter chegado, os temores de que seu envolvimento com o julgamento poderia não acabar bem se reforçaram. Ela escreveu a Jaspers e Heinrich Blücher, seu esposo, quase nos mesmos termos, descrevendo depreciativamente a multidão que se aglomerou no entorno do edifício onde ocorria o julgamento e quase tudo o que viu em Israel, com exceção de seus parentes e vários amigos de longa data. Descreveu Eichmann como um “fantasma resfriado”.


Essas impressões do primeiro dia se consolidaram ao longo do julgamento, aparecendo enfim com maior ou menor ênfase em Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal, publicado em cinco partes na revista The New Yorker entre fevereiro e março de 1963 (indicando que “filósofos não cumprem prazos”, como é mencionado no filme Hannah Arendt, de 2012, dirigido por Margarethe von Trotta). Logo a seguir, em maio, apareceu em formato de livro, com alterações menores. Os artigos e depois o livro despertaram fúria imediata, inicialmente na comunidade judaica, incluindo Israel, mas logo ultrapassando largamente esse público, ensejando uma duradoura e ruidosa polêmica que permaneceu sem trégua até 1966, arrefecendo sem silenciar até a morte de Arendt, em 1975. A polêmica em grande medida dissipou-se, consagrando a expressão “banalidade do mal” como uma das mais recorrentes da cultura geral, muitas vezes convertendo-se em um mero clichê para interpretar atos que são assustadores por seu ineditismo, sua magnitude ou sua disseminação . 


Anote aí


Roda de Conversa


Hoje, às 18h, na Palavrear


R. 232, 338 – Setor Leste Universitário, Goiânia


Participam Adriano Correia (UFG), Fernando Moi (UFG/PUC-GO) e Rosângela Chaves (Faculdade Católica de Anápolis)


O que esperar da obra


Adriano Correia problematiza controvérsias do julgamento de Adolf Eichmann, a partir das questões enfrentadas por Arendt: a jurisdição, a tipificação do crime, a noção de humanidade no ‘crime contra a humanidade’, a polêmica da pena de morte, o impacto e o legado do julgamento, etc. Fundamental aos interessados em direito internacional, direitos humanos, ética e filosofia política. 


Onde encontrar: almedina.com.br


Páginas: 196


Preço: R$ 79,00


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