Cultura

Ryuichi Sakamoto rompeu fronteiras da música com obra inventiva

Marcus Vinícius Beck

Publicado em 3 de abril de 2023 às 00:07 | Atualizado há 2 anos

Por anos a fio, a única certeza que a humanidade tinha era o som feito pelo compositor japonês Ryuichi Sakamoto, pioneiro da música eletrônica que perdeu a batalha para o câncer, aos 71 anos. Sakamoto havia revelado no início de 2021 sofrer com tumor localizado na região colorretal, após ter feito tratamento para contê-lo na garganta, contra o qual lutava desde 2014. À época, o artista cancelou suas apresentações para dar início ao tratamento.


Sakamoto viveu a arte de combinar notas para criar sons até o fim da vida. Sua música poderia ser alegre, mas também guiava o ouvinte pelos caminhos da nostalgia, com requintes de uma tragédia nietzschiana. Foi um compositor erudito apurado, cultivava minimalismo de poderosa densidade emocional e, em mais de uma ocasião, mostrou-se apaixonado pelos brasileiros Caetano Veloso, Gilberto Gil e Tom Jobim. 


Na residência de Tom, aliás, chegou a gravar o disco “Casa”, lançado em 2001 em que celebrava a bossa nova. Com elogios da crítica, o álbum foi parar na lista dos melhores daquele ano em levantamento feito pelo jornal “The New York Times”. Também dividiu palco na companhia de Caetano, no qual realizaram homenagem ao autor de “Garota de Ipanema”, e fez o mesmo ao lado de Gil, outro mestre tropicalista de quem era fã.


À BBC, Sakamoto explicou o que lhe causava tanto fascínio na bossa nova. “É uma música muito controlada. É calma, tem piano e a paixão está toda escondida. É como um oceano, quase sem ondas, mas com muita coisa acontecendo debaixo d´água. É como o canto de João Gilberto, você pode ouvir a paixão, mas ela está escondida dentro da música”, afirmou, destacando que as composições de Tom eram diferentes de tudo o que conhecia. 


“Foi nessa época que conheci Debussy e Ravel. Desde então eles dois e Jobim são parte de uma mesma família para mim”, enalteceu o artista japonês, que participou do “Programa do Jô” no Brasil. Bacharel em composição pela Universidade Nacional de Tóquio de Belas Artes e Música, Sakamoto surgiu no cenário musical na década de 1970 como tecladista da banda Yellow Magic Orchestra, considerada uma das precursoras da música eletrônica. 


Do supergrupo às telonas


A sonoridade do supergrupo contava com sintetizadores, sequenciadores e baterias eletrônicas, numa estética que se tornaria popular na música dos anos 80. Eram experimentações que chegaram a formar base do hip hop. Em 1980, revolucionou mais um pouco com a faixa “Riot In Lagos”, do disco “B-2 Unit”, tida como um dos primeiros registros fonográficos de eletro-funk a que se tem notícia. Mas sua criatividade o levou ainda mais longe, muito além do que imaginaria, já que nunca teve pretensão de ser famoso.


Como gostava de experimentar, parecia questão de tempo para Sakamoto trabalhar no cinema. Esse tempo não só chegou, como também o fez contracenar com a estrela pop David Bowie em “Furyo: Em Nome da Honra”, longa-metragem dirigido por Nagisa Oshima, em 1983. Ele encarnava, no filme, o capitão Yonoi, antagonista que estava atrás de informações a respeito dos prisioneiros de guerra, dentre eles o andrógino britânico – então astro mundial.


Além de tudo, “Em Nome da Honra” marcou também a primeira trilha sonora para a tela grande assinada por Sakamoto. Por um acaso, trata-se de uma das melhores composições dele, “Merry Christmas, Mr. Lawrence”, responsável pela energia de repressão sexual presente no filme. Toda ela é baseada no teclado. Não à toa, rendeu-lhe o Bafta. 


Mesmo na crista da onda, o músico jamais abandonou a verve experimental. Ao contrário, até o ajudou a se aproximar de celebridades do período, como David Bowie e Iggy Pop, figuras que tiveram participações fundamentais em trabalhos solos de Sakamoto. Também flertou com o movimento futurista italiano, mas nunca se distanciou demais dos estilos tradicionais, como é possível perceber ao ouvir o disco “Beauty”, lançado em 1989. 


Há na obra a presença marcante de Brian Wilson, ex-integrante do Beach Boys, além de elementos do pop japonês. Foi como se, com o disco, Ryuichi Sakamoto entrasse de vez nos anos 90, quando criou trilhas sonoras para “O Último Imperador”, “O Céu que nos Protege” e “O Pequeno Buda”, dirigidos pelo mestre italiano Bernardo Bertolucci. Colaborou com o espanhol Pedro Almodóvar, em “De Salto Alto”, e participou da adaptação ao cinema do romance “O Morro dos Ventos Uivantes”, este estrelado pela diva francesa Juliette Binoche.


Outro cineasta agraciado pelo talento musical de Sakamoto foi Brian De Palma, que teve trilha do compositor japonês em dois filmes: “Olhos de Serpente” e “Femme Fatale”. Hoje, são tidos como bons filmes, mas foram criticados assim que saíram. Até o fim da vida,  Ryuichi Sakamoto equilibrou-se entre discos e trilhas para a tela grande – os últimos trabalhos foram “Love After Love” e “Beckett”, além de “Monster”, sem data de estreia.


Vida e militância


Por pouco mais de duas décadas, foi casado com a pianista Akiko Yano, ao mesmo tempo em que tinha caso com sua agente, Norika Sora. Após a separação, conviveu com Sora, com quem dividiu a vida até a morte na última terça-feira, 28. Deixou quatro filhos. 


Maestro indiscutível e preciosidade artística, Sakamoto nasceu no dia 17 de janeiro de 1952, numa Tóquio do pós-guerra, mergulhada nas águas da revolução dos anos 1960, da qual participou simultaneamente às aulas que assistia com intuito de aprender o ofício de compositor. Em sua vida, nunca deixou de demonstrar preocupação com o Japão, desde a bolha econômica até a tragédia de Fukushima, quando integrou movimento anti-nuclear. 


Ativista e humanista, à sua maneira, mostrou-se voz importante para os desmandos contra a democracia, como lembrou o jornal francês “Libération”, em obituário. Há semanas, enviou carta aberta à governadora de Tóquio, em que se dizia preocupado com as agressões ao meio ambiente. “Não devemos sacrificar árvores preciosas que nossos ancestrais passaram cem anos protegendo e cultivando para ganhos econômicos de curto prazo”, afirmou.  

Tags

Leia também

Siga o Diário da Manhã no Google Notícias e fique sempre por dentro

edição
do dia

Impresso do dia

últimas
notícias