“Conversas são modos de estabelecer entre nós lugares profundos”
Marcus Vinícius Beck
Publicado em 21 de janeiro de 2023 às 21:55 | Atualizado há 2 anos
O tropicalista Gilberto Gil, 80, se mantém na linha de frente da cultura nacional desde os anos 1960, quando sintonizou a MPB às novidades estéticas internacionais. Sua trajetória de seis décadas abraça música, câmara de vereadores, MinC, militância antirracista e ambientalista. E os anos de tropicalismo, a experiência no xadrez, o exílio londrino, o violão João Gilberto e a transgressão libertária de Jimi Hendrix também fazem parte dessa jornada.
Gil, além de tudo, mostra-se bom de prosa. Leia sua entrevista ao jornalista Jardel Sebba publicada na extinta revista “Playboy” em junho de 2007 ou passe o olho pelo perfil escrito por Otávio Rodrigues para a revista “Rolling Stone”, que saiu em outubro do ano seguinte. Nas conversas, ele fala sobre qualquer assunto, com bom-humor e revelou – imagine só – ter assistido a jogos do Brasil na Copa de 1970, em Londres, curtindo uma viagem de ácido.
Hoje, tornou-se um senhor do tipo que adora ter filhos, netos e bisnetos reunidos ao seu redor. Ou seja, em outras palavras, Gil virou patriarca. Mas nunca parou de praticar a arte do diálogo e, nesta segunda-feira, 23, estreia no Canal Brasil a terceira temporada do programa “Amigos, Sons e Palavras”. São 13 episódios inéditos, sempre às segundas, a partir das 20h45. A primeira convidada é a atriz Fernanda Montenegro, rainha das artes cênicas.
Finitude da vida
O Diário da Manhã teve acesso a dois episódios do programa. No primeiro, Gil canta para sua colega imortal da ABL a música “Palco”, lançada no disco “Luar”, em 1981. Os dois falam, na prosa, sobre o ‘batismo’ de suas profissões no palco. Para Fernanda, ser atriz é possuir uma vida particular, celular, resguardada e sacramentada, que dá poder a outra entidade – a da interpretação – vir à tona. “É uma esquizofrenia aceita”, resume.
“É assim comigo. Tem minha porta de casa para dentro, que é uma entidade e tem uma pessoa da porta para fora que é outra entidade. Ela pode até mudar de caráter, mudar de tom de vida, mudar o modo de intervir”, reflete a atriz, que convenceu o dramaturgo Nelson Rodrigues, após oito meses de telefonemas, a escrever uma peça para que ela estrelasse e produzisse com o marido, Fernando Torres. Era “Beijo no Asfalto”, clássico do teatro.
Gil revela, em coletiva realizada na última quarta-feira, 18, para a qual o DM foi convidado, que as entrevistas representam uma aproximação dele com amigos, colegas e pessoas que admira. Além da dialética intimista, há depoimentos capazes de emocionar, mas o artista credita a beleza do programa à equipe que lhe sustenta atrás das câmeras.
“Em relação às conversas, são muitas que já temos esses dias, sobre o que já acontece, e as meninas me ajudaram a ancorar essa realidade. As conversas são modos de estabelecer entre nós lugares profundos, até onde podemos colocar o pé sem aprofundar. É o que precisamos para o desenvolvimento dos temas, das dúvidas”, afirma Gil, sem deixar de citar, contudo, que “Amigos, Sons e Palavras” é de todos, em que todos fazem e todos desfrutam, não só ele.
Olhando direto nos olhos de Fernanda Montenegro, o tropicalista fala sobre idade, representatividade de ambos e, a respeito da amiga, externaliza uma visão bem própria: “na dimensão simbólica, na dimensão espiritual, você tem sido, sim, uma mãe extraordinária pra mim e pra tanta gente, sem dúvida! Inspiradora”. Gil queria tornar público não apenas a admiração pela única atriz brasileira a ser indicada ao Oscar, mas sua importância ao Brasil.
A música, como se imagina, está presente nesta temporada de “Amigos, Sons e Palavras”. Sendo Gilberto Gil a figura ímpar à música que é, dono de violão enérgico e voz capaz de deslocar acentos, espera-se bons bate-papos sobre a arte dos sons. É o que faz, já no segundo episódio, em que recebe a cantora Liniker. E, para ela, toca “Raça Humana”, canção carro-chefe do álbum de mesmo nome, que saiu em 1984, época pop de sua discografia.
“Eu sinto que a raça humana é esse grande mistério que a gente passa uma vida inteira na busca de entender”, filosofa Liniker, ao ser instada por Gil sobre existência. Ela relata, ainda, como foi sua transição de gênero. “Estava cansada de não me sentir pertencente ao meu corpo, às minhas ideias. Eu precisei recomeçar, precisei mergulhar dentro de mim pra conseguir entender então quem eu era, o que eu sentir. E acho que isso não é uma coisa findada, eu sigo nessa construção de mim mesmo, sigo na construção do meu caminho.”
Atrás do novo
Desde que descobriu – por meio do mano Caetano – o neorrealismo italiano, a nouvelle vague, os quadros de Helio Oiticica, o experimentalismo no teatro de Zé Celso, o cinema novo e as novas correntes da intelectualidade moderna, Gilberto Gil nunca evitou descobrir novas experiências estéticas. Africanizou-se e orientalizou-se nos anos 1970, com a trilogia “Refazenda, “Refavela” e “Realce”, para nadar nas águas do pop oitentista, mais tarde.
Para o compositor e poeta Arnaldo Antunes, Gil deixa que as palavras se digam, se liguem umas às outras, imantadas pela música, para dizer o que ele tem a dizer. “Gil é receptivo. Luz onde as sombras se assentam, e que lhes dá contorno. Clareza que abraça o mistério sem temor”, analisa o autor do disco “O Silêncio”, na apresentação da terceira edição de “Todas as Letras”, publicado ano passado pela Companhia das Letras. Gil é o samba do diálogo.
Anote aí
“Amigos, Sons e Palavras
Toda segunda-feira
Às 20h45
Repete às terças, às 13h30; e domingos, às 10h15
Classificação: Livre