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EUA tem quase 100 mil presos inocentes, exame de DNA está corrigindo esta injustiça

NOVA YORK — Angel González foi preso na madrugada do dia 11 de julho de 1994, ao deixar a namorada em casa, numa pequena cidade de Illinois. Ele foi visto saindo da garagem do prédio da cunhada num carro que correspondia vagamente à descrição do veículo usado por dois homens que haviam estuprado uma moradora do mesmo condomínio, poucas horas antes. Apesar de não lembrar em nada o retrato falado proporcionado pela vítima — que o reconheceu à distância, no escuro, sentada no banco de trás de uma viatura oficial —, González acabou condenado a cinco décadas de prisão. Ele acabara de completar 20 anos, não tinha antecedentes criminais e falava pouco inglês na época: nascido no México, ele chegara aos Estados Unidos cinco anos antes.

Estima-se que entre 2,3% e 5% dos presidiários do país sejam inocentes — algo entre 46 mil e cem mil pessoas que, como González, vêm conseguindo na Justiça vitórias históricas que revelam surpreendentes fissuras num sistema criminal que é considerado um dos melhores do mundo. Desde 1989, 1,6 mil sentenciados foram libertados, 330 deles após a realização de novos testes de DNA quando o material coletado na cena do crime ainda estava disponível. Foi a propagação da técnica que ajudou a trazer à tona, cada vez mais, o drama de gente que passou décadas (a média é 14 anos) atrás das grades, muitas vezes na fila da pena de morte, por crimes que não cometeram. O mexicano — que em 2013 conseguiu provar que as evidências encontradas nos shorts da menina não eram dele e teve direito a um novo julgamento — saiu da cadeia no dia 9 de março.

— É difícil descrever o que é ser preso por um crime tão horrendo. Você se vê ali com os piores dos piores, e não sabe o que fazer. Que tipo de homem faz uma coisa dessas? Só um animal. Então é horrível. Horrível — diz ele por telefone, de Chicago, logo após receber o certificado de inocência, na última quinta-feira. – Agora sou uma pessoa normal, um cidadão regular, de ficha limpa, de novo. Sinto-me livre finalmente. Fisicamente, mentalmente.

CORTES MAIS PROPENSAS A REVER DECISÕES

González foi aconselhado por um companheiro de cela, que leu a transcrição dos seus depoimentos em 1997, a escrever para o Innocence Project (IP), organização fundada em Nova York em 1992 com o objetivo de libertar indivíduos condenados injustamente por meio de testes de DNA e pressionar por reformas no sistema de Justiça criminal que evitem futuros equívocos. Dos 330 casos de libertação por meio de novos exames — entre os quais 200, diga-se, referem-se a negros —, o IP estava envolvido em 176, e atualmente trabalha em outros 300. A história de González confirma as pesquisas da entidade: 72% das condenações que se revelam equivocadas nos EUA são causadas por identificação malfeita do suspeito, enquanto 47% correspondem a táticas forenses impróprias e 27%, a falsas confissões.

— O número de exonerações tem crescido de forma relativamente constante ao longo dos últimos anos. E ao mesmo tempo temos visto um número crescente de outros tipos de exoneração. Os casos de DNA, que oferecem provas definitivas, ajudaram a mostrar que o sistema erra mais frequentemente do que se pensava. E isso influenciou as cortes, que têm examinado os casos com mais seriedade e têm sido mais receptivas a anular condenações mesmo em casos em que não há evidência de DNA. Por isso temos visto casos históricos de exonerações — comemora Paul Cates, diretor de comunicação do Innocence Project, que está presente em dez países e a cada ano, só nos EUA, é procurado por cerca de três mil presos que se dizem inocentes.

A imprensa americana vem documentando com entusiasmo a onda recente de libertações. Condenado por estupro em 1991, aos 17 anos, com base apenas no testemunho da vítima, Quentin Carter foi declarado inocente no último dia 12, quando ficou provado que o criminoso era, na verdade, o padrasto da menina. O texano Alfred Dewayne Brown, que aguardava havia dez anos a pena de morte, por assalto seguido de morte de um policial em 2003, ganhou a liberdade dois dias antes — o juiz entendeu que sua namorada, que estava com ele na hora da tragédia, foi coagida a mudar um depoimento que corroborava o álibi. Brown é o quarto condenado à execução solto este ano (desde 1973, eles já são 152). Em abril, ganhou destaque o caso de Anthony Ray Hinton, que passou três décadas sentenciado à morte pelo assassinato de dois homens no Alabama em 1985, embora não houvesse testemunhas ou qualquer evidência de sua culpa.

O debate esquentou ainda mais no dia 9 deste mês, com suicídio do nova-iorquino do Bronx Kalief Browder, que passou três anos preso à espera de julgamento e apresentava um grave quadro de depressão desde que fora libertado, em 2013. O menino tinha 16 anos quando foi preso com um amigo, ao voltar caminhando de uma festa. Acusado de roubo, apesar de não portar objeto alheio algum, ele não tinha recursos para pagar US$ 3 mil de fiança e passou quase todo o tempo de prisão —800 dias — na solitária. Acabou se enforcando na janela da casa da família, a poucos metros do zoológico mais famoso da cidade. Nova York também tem acompanhado com atenção uma leva de cancelamentos de condenações de casos que envolvem o detetive aposentado do Brooklyn Louis Scarcella, que forneceu evidências para seis processos anulados desde 2013, dois só no último mês.

— Todos os sistemas criminais são falíveis e todo país deveria pesquisar seus dados para aperfeiçoar seu sistema. Nossa filosofia é encarar cada exoneração como uma oportunidade de ver onde o sistema falha. O sistema americano não é perfeito, não acredito que algum o seja — afirma Cates. — Mas há sinais de mudança. Hoje todo estado americano tem uma lei que dá acesso a testes de DNA: dependendo do crime, podemos ter a oportunidade de voltar à corte e provar a inocência de um condenado. E estamos trabalhando em novas leis que exijam que os interrogatórios sejam feitos por um policial que não saiba quem é o suspeito, e que eles sejam mandatoriamente filmados (hoje, menos da metade dos estados gravam tais depoimentos).

O IP advoga ainda por leis que preveem a compensação financeira de ao menos US$ 50 mil por ano de prisão a condenados injustamente. Trinta estados já adotam alguma forma de indenização quando fica confirmado que houve violação dos direitos civis. Em março, Juan Rivera, que passou 20 anos encarcerado por um assassinato que não cometeu em 1992, alcançou um acordo recorde de US$ 20 milhões com o estado de Illinois. Agora munido do certificado de inocência, Angel González está apto entrar na Justiça por recompensa. Mas ainda avalia se vai à frente.

— Que tipo de dinheiro de dá 21 anos da sua vida de volta? Uma vida não tem preço. É impossível recuperar o tempo perdido dessa forma por alguém — resigna-se. — Tinha muitos planos, queria me casar, viver uma vida normal, mas aconteceu uma tragédia comigo. E aqui estou, 21 anos depois. Não sei o que vai ser de mim no ano que vem, tudo me parece muito distante. Quero aproveitar o hoje. É muito simples para mim: quero apenas uma vida normal. Ser feliz. Se isso ainda for possível.

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