Artigo: Uma chuva de bombas
Diário da Manhã
Publicado em 29 de junho de 2015 às 03:07 | Atualizado há 10 anosMONTANHAS NUBA, Sudão – Os oito filhos da família Shanta moravam num vilarejo de choças de sapê e nunca haviam ligado uma lâmpada elétrica nem usado relógio, nunca andaram de carro nem sequer de bicicleta, nunca falaram ao telefone.
Seu primeiro contato real com o século XXI aconteceu numa noite de fevereiro no qual se abrigavam num buraco enquanto o governo sudanês bombardeava sua cabana. Se você quiser entender por que o presidente do Sudão, Omar al-Bashir, deve ser processado pela Corte Penal Internacional, em Haia, a família Shanta oferece um lembrete de que as atrocidades de al-Bashir continuarão enquanto ele estiver no poder.
A bomba caiu perto das choupanas da família Shanta, matando instantaneamente uma prima, Amusa Shanta, 18 anos.
Dentro do buraco, as crianças sobreviveram ao impacto inicial, mas a explosão incendiou um barraco vizinho e o telhado de sapé caiu sobre a trincheira enquanto ainda queimava. Os buracos são poços profundos cavados atrás de quase toda casa, escola e prédio aqui nas Montanhas Nuba, para que as pessoas possam buscar proteção quando o governo as bombardeia – o que acontece diariamente, numa vila ou outra. A profundidade oferece proteção contra os estilhaços, mas também dificulta a fuga quando viram poços de fogo.
“Eles gritavam”, contou Osman Shanta, pai de cinco das crianças naquele buraco, que jogava água freneticamente nas chamas. “Então, a gritaria parou.”
Duas das crianças – Diana, 12 anos, e Bashir, nove – foram imediatamente mortos pelo fogo, mas as outras três sobreviveram, junto com três primos. Um carro levou às pressas as seis crianças numa viagem de quatro horas por estrada de terra até um hospital; o que em si pode ser perigoso, porque o Sudão também bombardeia veículos e hospitais nas Montanhas Nuba.
Então, por que o Sudão bombardeava um vilarejo de choças de sapê?
Não foi um acidente de guerra. O ato reflete a estratégia sudanesa deliberada de terra arrasada contra os insurgentes aqui na ponta sul do Sudão.
Um exército rebelde com milhares de soldados, contando aparentemente com forte apoio dos moradores como seu protetor contra o governo nacional, controla as Montanhas Nuba. O governo sudanês bombardeira os rebeldes e periodicamente os ataca, mas a maioria dos ataques parece visar civis, aparentemente para tornar a área inabitável, de modo que não sobre ninguém para apoiar os rebeldes.
Esta é a minha quarta visita às Montanhas Nuba, todas furtivas, porque o Sudão proíbe jornalistas, ajuda humanitária e qualquer um de visitar esta área. Eu me infiltrei nas linhas rebeldes num veículo sujo de barro para dificultar a ação dos bombardeiros.
A equipe no hospital me alertou sobre as seis crianças queimadas da família Shanta. “Eles estavam horrivelmente queimados quando chegaram”, conta o Dr. Tom Catena, norte-americano que é o único médico do hospital. Uma menina de três anos, Ayat, com praticamente metade do corpo chamuscado, morreu numa questão de dias.
Uma irmã, Hosana, dez anos, dava a impressão de que iria sobreviver, mas quando as feridas ficaram infeccionadas com tétano, ela também não resistiu.
Catena se concentrou em tentar salvar o irmão de oito anos, Shanta, que resistiu durante semanas. Contudo, moscas punham ovos nos ferimentos e, logo, as queimaduras estavam infestadas com larvas. O médico contou que extraia as larvas, mas mais surgiam no dia seguinte. O menino demonstrou coragem extraordinária, mas gritava de dor todos os dias ao ter as roupas trocadas.
Por fim, ele também morreu.
Cheguei ao vilarejo da família Shanta depois de passar por uma área de casas bombardeadas, e encontrei moradores traumatizados que ficavam em cavernas ao abrigo dos bombardeios. As três crianças da família vão carregar as cicatrizes pelo resto da vida; Rhoda, seis anos, não consegue esticar os braços por causa das queimaduras.
Osman Shanta e a esposa, Sadia, choram a perda de quatro filhos e dos sobrinhos. Eles reconfortam o filho que sobreviveu, Abdullah, quando ele tem pesadelos.
No dia da minha visita, o povoado sofreu novo bombardeio. A temporada de chuvas está começando, ou seja, as cavernas são úmidas e as crianças vivem doentes.
Alguns grupos – Nuba Reports, Enough Project, Human Rights Watch – chamam atenção para o sofrimento vivenciado aqui, mas as Montanhas Nuba não têm valor estratégico e nem os Estados Unidos nem outros governos deram muita importância aos bombardeios ou à proibição de ajuda humanitária. Quando senador, o agora presidente norte-americano, Barack Obama criticou o então presidente George W. Bush por consentir as atrocidades sudanesas, mas o governo Obama fez menos para pressionar o Sudão do que o governo Bush.
Aquela bomba matou seis primos de uma família e deixou três crianças desfiguradas. E essas bombas e projéteis continuam a cair, dia após dia.