O ator Ronaldo Serruya, lá no começo da década de 1990, revelou sua homossexualidade para a mãe, Dona Ângela. Aos 22 anos, o jovem, sem negar um certo alívio, ouviu na sequência uma incômoda recomendação. "Por favor, não vá ficar doente porque não admitiria se você morresse antes de mim", advertiu Ângela.
A preocupação materna, que pode ser vista hoje como um excesso dramático, tornava-se compreensível em uma época em que a aids era vista como sentença de morte e, carregada de preconceitos, tida com um mal dos homossexuais. "Desde que a aids chegou ao Brasil, há quarenta anos, os gays conviviam com a ideia de que não teriam escapatória, de que algum dia seriam tocados, o que ainda gera muitos estigmas", afirma o ator.
Em 2014, Serruya, profissional reconhecido, um dos integrantes do Grupo XIX de Teatro e fundador do coletivo Teatro Kunyn, descobriu ser portador do vírus HIV durante um check-up de rotina.
"Um mês depois, conversei com a minha mãe que, a partir daquele momento, eu viveria com o HIV e muita coisa tinha mudado desde os tempos do Cazuza, do Lauro Carona e do Renato Russo", declara o ator, referindo-se a nomes famosos levados pela aids. "Mas minha mãe, que mora no Rio de Janeiro e sempre acompanhou minhas estreias em São Paulo, desta vez não virá e entendo que ela tenha seus limites."
A estreia em pauta é a de A Doença do Outro, solo escrito e protagonizado por Serruya, que começou temporada presencial nesta terça, dia 30, e segue até o domingo, dia 5, no Espaço Cênico Ademar Guerra do Centro Cultural São Paulo, com ingressos a R$ 30.
Sob a direção de Fabiano Dadado de Freitas, a montagem é uma das peças contempladas pela Mostra de Dramaturgia em Pequenos Formatos Cênicos, que ainda apresentará Trava Bruta, de Leonarda Glück, entre os dias 7 e 12, e Betta Splendens, de Tatiana Ribeiro, de 14 a 19 deste mês. De 31 de janeiro e 6 de fevereiro, A Doença do Outro ganha novas sessões, desta vez on-line, no youtube do Centro Cultural São Paulo.
Claro que não foi um processo simples levar ao palco A Doença do Outro. Logo depois de receber o diagnóstico, Serruya viveu um luto pessoal. "É inevitável ter medo, você se sente um corpo sujo, vem a culpa e, claro, existe um processo por trás do HIV, que inclui a perspectiva do vírus e a perspectiva social", diz.
O artista precisou de um tempo para entender como ampliaria o tema e colaboraria para quebrar estigmas resistentes. Uma espécie de ensaio foi o espetáculo Desmesura, produzido pelo Teatro Kunyn em 2017, que se inspirava na figura do dramaturgo argentino Raúl Damonte Botana, o Copi (1939-1987), vitimado pelo aids. "Ali, eu estava protegido por um personagem, mas já foi uma tentativa de discussão mais contemporânea sobre o que pretendia montar", explica.
A Doença do Outro é estruturada como uma palestra-performance em que a plateia recebe estímulos para responder perguntas ou opinar sobre situações trazida pelo narrador representado pelo ator.
"O que apresento vem de uma perspectiva autobiográfica, mas é atravessado por conceitos que saem do meu corpo e são interligados por questões sociais e de raça", define. "Tenho noção de que o fato de ser um gay branco, artista e morador de uma grande cidade me proporciona facilidades que alguém do interior do Brasil não tem e que, se essa pessoa precisa silenciar diante do HIV, é porque muitas coisas entram em jogo na vida dela."
Serruya completa 50 anos na segunda, dia 6, e reconhece que, apesar da maturidade e dos avanços da medicina, sofreu da mesma forma que se tivesse sido diagnosticado aos 20 e poucos anos. "O medo da rejeição até hoje é muito forte. Sei de gente que não revela sua condição para a família ou amigos íntimos", declara.
O artista apressa-se em afirmar que sair do armário do HIV, ainda mais sob os olhos do público, não lhe faz melhor que ninguém. "Só que, dentro do meu universo, entendi que o silêncio não me protegeria de nada e faz parte do meu papel de artista colaborar para a desmistificação."
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