Marco Antônio Duarte era morador antigo do Setor Marista e sentiu a necessidade de procurar um local com mais tranquilidade pra viver com a família. Residente nas proximidades do famoso quadrilátero do setor, bastante conhecido por seus badalados e concorridos bares e boates da noite goianisense, resolveu então procurar um local mais calmo pra morar com sua família. Depois de muita pesquisa, Marcos Antônio encontrou o tão sonhado sossego em um dos mais tradicionais e charmosos bairros da capital Goiana, o Setor Sul.
O bairro faz parte da história da fundação de Goiânia e estava previsto no projeto inicial do arquiteto Atílio Correia e Lima. Nos planos do renomado urbanista o núcleo da nova capital era composto pelos Setor Central - o primeiro a ser feito - além do setores Sul, Norte, Leste e o Oeste.
Mais em 1935, Correia e Lima deixa as obras da cidade para retornar a então capital federal, Rio de Janeiro. Foi então que o escritório de outro renomado arquiteto da época, Armando Godoy, assume o projeto urbanístico com a execução a cargo da empresa dos irmãos Jerônimo e Abelardo Coimbra Bueno.
Entre as alterações feitas no projeto pioneiro de Godoy, o Setor Sul foi o que mais sofreu com as mudanças. Pois o urbanista resolveu implantar no setor o que havia de mais de moderno no urbanismo mundial da época, inspirado no movimento “Cidades Jardins”, que por sua vez tinha suas raízes inspiradas nas ideias do pensador inglês Ebenezer Howard que, em 1902, escreveu um tratado sobre a vida na cidade e influenciou o mundo. “Garden Cities of To-morrow”, algo como ‘cidades jardim de amanhã’, que era uma tentativa de organizar as cidades inglesas que cresciam desenfreadamente, impulsionadas pela Revolução Industrial.
Uma das principais características do projeto do Setor Sul eram as casas com garagens nos fundos, de onde o proprietário sairia e chegaria do trabalho de carro, e o portão da frente voltado para o jardim verde, por onde as pessoas andariam a pé. Outra característica do projeto são os becos que terminam em uma espécie de rotatória, que no urbanismo francês se chama CUL DES AC (fundo de saco).
O Setor Sul que Marcos Antônio encontrou há 4 anos, quando se mudou para a nova casa, não era exatamente o sonhado e planejado por Armando de Godoy. Ela acabou não sendo implementado à risca. O sistema labiríntico desenhado pelo urbanista, por exemplo, foi virado pelo avesso. As casas foram construídas nesses lotes de costas para os jardins e de frente para as ruas .Mesmo assim, nos dias atuais, o setor se preserva como um dos mais queridos e charmosos bairros de Goiânia, rico em história, área verde, arte e lugares que movimentam a cultura e que proporcionam encontros em meio a paisagens deslumbrantes dos diversos bosques e jardins secretos, alguns até então descobertos há pouco tempo.
E foi em um desses belos espaços que Marcos Antônio fixou residência. Mais precisamente na quadra F-40, ou Bosque da Gameleira, como é agora carinhosamente chamado pelos moradores. Um dos principais atrativos do local, que motivou a mudança do nome, é uma frondosa e bela gameleira, que proporciona uma enorme e aprazível sombra. "Talvez a maior sombra de uma árvore por metro quadrado do Estado de Goiás é nossa e esta aqui. Então resolvemos renomear para “Bosque da Gameleira, " explica Duarte. O local ainda conta com uma quadra poliesportiva, jardins, além de obras de artes a céu aberto pintadas nos muros.
Mas nos últimos tempos o espaço, por negligência do poder público, já não ostentava mais a beleza de outrora. Um dos problemas recentes foi causado pelas obras nas proximidades em razão da implantação do BRT. A empresa responsável pelas obra, na emergência de corrigir a rede fluvial de uma trincheira que inundou, parte do asfalto da principal rua do bosque foi removido, fazendo com que a enxurrada inundasse a quadra de terra e lama. Soma-se a isso, outros transtornos como mato alto, muro caído, lixo, falta de iluminação entre outros problemas enfrentados pelos moradores.
A mudança desse cenário começou exatamente no início da quarentena, provocada pela pandemia do Convid-19. Marcos Antônio, para ajudar a passar o tempo livre e, como ele mesmo pontuou, “não engordar por ter que ficar ficar dentro de casa sem fazer nada e só comer”, convidou o filho Marcos, que também é engenheiro, para fazer um pouco de atividade física e jogar basquete na quadra. Mas o que os dois encontraram foi uma local totalmente tomada por entulho, muito terra e lama. “Assim que entramos na quadra vimos que era impossível bater nosso basquete lá. Quase sofri uma queda ao escorregar na lama que ali se acumulava. Então chamei meu filho para resolvermos o problema. Pegamos enxadas e começamos a remover toda aquela terra e entulho. Com a ajuda de mais um vizinho, o Felipe, ficamos até 3h da manhã e tiramos 2 caminhões de terra de lá, ” relata Marcos. E não parou por aí. Ele resolveu então dar continuidade na manutenção e solucionar os inúmeros outros problemas do local, iniciando assim o projeto de revitalização e adoção do “Bosque da Gameleira”.
Mas essa não foi a primeira vez que o aposentado teve a iniciativa de promover a recuperação Quadra F-40. “Quando cheguei aqui há cerca de 4 anos, a situação do bosque era de muito abandono e descaso. Logo nos primeiros meses acabei pegando uma dengue que quase foi fatal. Minha esposa queria até mudar daqui. Então resolvi bater de porta em porta dos vizinhos e convida-los para fazermos uma mobilização e nós mesmos darmos um jeito no problema. Na época o pessoal até apoiou a iniciativa, mas relutaram em ajudar financeiramente. Então iniciei eu mesmo e banquei muita ação por conta própria. Umas das primeiras coisas que fiz, por ser engenheiro elétrico, foi resolver o problema da iluminação que vivia sofrendo com sobrecarga, quedas e permanecia com as luzes apagados por semanas. Mas só que dessa vez, além de apoiaram a minha iniciativa os vizinhos começaram a contribuir. E assim o projeto de revitalização e adoção da nossa praça ganhou força”, conta Marcos.
Francisco Carlos de Paula Dias, o Chicão, e Virgínio Azeredo, foram alguns dos primeiros moradores a abraçarem o projeto iniciado por Marcos Antonio. Para Virgínio, que é agrimensor, a iniciativa foi muito importante, pois além de trazer qualidade de vida para os moradores, acabou despertando a conscientização pela limpeza e manutenção do local. Segundo ele, um exemplo é a quadra que não funcionava a mais de 4 anos, “cheia de terra, muros caídos, traves quebradas e por aí vai. Hoje está tudo arrumado e o local voltou a ter vida. Os moradores voltaram a fazer uso da quadra, tanto os adultos como as crianças e o resultado disso tudo é uma melhor qualidade de vida para todo mundo” diz chicão. “Hoje os netinhos já descem pra cá pra brincar na quadra, na sombra da gameleira e é uma satisfação muito grande ver todo mundo querer jogar nela” completa o engenheiro agrônomo, Chicão. Segundo ele, a iniciativa dos "engenheiros da quarentena", acabou contagiando a todos e hoje Bosque da Gameleira conta com total apoio de vários moradores.
Além da revitalização da bosque, 30 mudas de árvores foram plantadas no amplo terreno. Hoje o espaço conta com um jardineiro, bancado pelos moradores, para fazer o manutenção e os cuidados necessários. Para a segurança, câmeras foram instaladas e um grupo de whatsapp ajuda na troca de informações. Em caso de alguma anormalidade, uma viatura que faz o patrulhamento da região é imediatamente acionada.
Marcos Antônio não esconde o orgulho de sua iniciativa ter resultado em uma rede de solidariedade para o bem comum de todos. “Eu como cidadão fico muito satisfeito com o exemplo que nós fizemos aqui. Às vezes, temos que deixar de lado a espera do poder público e fazer a nossa parte. Comecei com uma enxada removendo terra da quadra com meu filho, hoje contamos com a colaboração de muita gente e muita coisa está sendo feita”, comemora.
Embora seja uma obrigação por parte dos governantes, ele ressalta a importância da iniciativa de cada um fazer sua parte, sem ficar dependendo e esperando unicamente do poder público. “Claro que temos que cobrar, ir atrás, mas se podemos fazer nossa parte, vamos fazer. Todos vamos ganhar com isso. Depois de tudo que fizemos, hoje já temos um pouco da atenção que precisamos. Essa semana mesmo solicitamos a manutenção da iluminação e fomos prontamente atendidos. Então o que queremos hoje é essa manutenção. Fizemos a nossa parte. Inclusive peço para que deem uma olhada com carinho nas outras praças do setor. São 18 no total e elas são verdadeiros cartões de visita pra nossa cidade e precisam de cuidados”, completa Marcos Antônio.
Para ele, o momento atual inspira um cuidado redobrado em razão do período da dengue associado a pandemia do Covid-19. “Já temos que enfrentar o problema do Corona vírus, mas não podemos esquecer outro problema grave que sofremos todos os anos aqui na mossa cidade, que é a dengue. Eu mesmo já tive dengue e sei da gravidade. Então é importante ficarmos atentos em nossa casa, onde moramos, para que cuidemos bem do nosso lixo, água parada e tantos outros ações que sabemos que é de suma importância para proteger nossa saúde. E claro, cobrar do poder público para que tenhamos a assistência necessária. ”
O projeto embrionário do arquiteto Armando de Godoy acabou não sobrevivendo em sua plenitude como planejava para o Setor Sul. Mas o exemplo inspirado por Antônio Duarte e os moradores do Boaque da Gameleira, de certa forma resgatou um dos principais objetivos do notório urbanista na implantação do Movimento Cidade-Jardim no local, que era estimular à convivência harmoniosa entre os moradores.
História do Setor Sul
Foi projetado por Armando de Godoy, engenheiro formado pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro e considerado um dos mais importantes urbanistas brasileiros da primeira metade do século XX. Godoy conferiu ao bairro traços tipicamente residenciais, concebendo-o sob forte inspiração do movimento das cidades-jardim. A sua referência mais direta foi a cidade de Radburn (EUA), projetada por Clarence Stein em 1929.
O projeto do bairro foi aprovado em 1938, mas a princípio previu-se que a sua implementação se faria somente a partir de 1962. Entretanto, o Governo do Estado de Goiás iniciou a venda de lotes no bairro ainda em 1937. Em 1950, pressionado pelos proprietários e pela contínua incidência de invasões na área destinada ao futuro bairro, o Governo liberou a ocupação dos terrenos.
No projeto original, quase todos os lotes possuem duas frentes, abrindo-se tanto para um cul-de-sac quanto para uma área verde. As vias que cortam as áreas verdes foram projetadas para servirem de acesso principal às residências, enquanto que os cul-de-sacs foram concebidos como ruas de serviço. Vias arteriais ligam o Sul ao Centro e aos demais bairros da cidade. No projeto de Godoy, essas vias foram concebidas como um asterisco a partir uma grande praça circular - a atual Praça do Cruzeiro.
Todavia, a antecipação da permissão para construções no bairro anteriormente à conclusão da sua urbanização favoreceu bastante a descaracterização do projeto original. Por ignorarem o projeto, a maior parte dos proprietários dos terrenos terminou por construir as edificações com as frentes voltadas para os cul-de-sacs, e os fundos, para as áreas verdes. A urbanização do bairro dar-se-ia, em ritmo lento, ao longo das décadas de 50 e 60, mas negligenciaria muitos aspectos do projeto, acima de tudo as áreas verdes. Muitas de tais áreas foram legal e ilegalmente apropriadas por donos de lotes adjacentes; outras converteram-se em espaços baldios.
Projeto Cura
Desde então, houve algumas tentativas de reurbanização do bairro, a mais notável destas tendo sido o Projeto Cura, patrocinado pelo antigo Banco Nacional da Habitação (BNH). O Projeto Cura foi lançado em 1973, iniciado em 1977, e concluído em 1980 - não tendo contado com massivo apoio da comunidade local. O seu principal resultado foi a urbanização de diversas das áreas verdes do bairro, muitas das quais foram arborizadas, e equipadas com play-grounds, bancos, postes de iluminação e quadras poliesportivas. Contudo, a despeito dessa e de outras tentativas de reestruturação, o Setor Sul permanece ainda bastante distante do ideal que orientou a sua concepção.