Mais de três de séculos de escravização dos negros no Brasil, deixaram cicatrizes doloridas na sociedade. Apagar os rastros deste período, o racismo estrutural e institucionalizado, apesar de crime previsto na constituição, ainda é um dos maiores desafios da nação. Assim, neste dia 20 de novembro, data atribuído à morte de Zumbi dos Palmares, em 1695, um dos maiores líderes negros do Brasil que lutou pela libertação do povo, em que se comemora o Dia da Consciência, ainda é pertinente questionar: o povo preto foi mesmo liberto após a Lei Áurea?
Para a professora historiadora e antropóloga Yordanna Lara Rêgo, a resposta definitivamente é não. Segundo ela, a escravização em Goiás, assim como em todo território brasileiro, prosseguiu por mais 70 anos, após o estabelecimento da lei abolicionista no Brasil, que foi assinada em 13 de maio de 1888,
“Camuflaram o tráfico negreiro e internamente, mantiveram o sistema escravocrata como base do sistema econômico da invasão portuguesa. Pelo fato do Brasil ser a última colônia a insistir em não romper com o sistema escravocrata, a Inglaterra ameaçou não consumir o açúcar produzido no Brasil, caso este não finalizasse o tráfico negreiro e a escravização imediatamente” argumenta, ressaltando que nasceu dessa “façanha” a famosa expressão popular “para inglês ver”.
E até hoje a professora consegue identificar o trabalho escravo no Brasil em diversas relações de trabalho, devido, segundo ela, à capacidade do capitalismo, de se reinventar a cada investida de resistência a ele. Sendo assim, analisa que as estratégias de dominação desse sistema se especializam, para manutenção de suas bases coloniais racistas e patriarcais.
“E a escravização, não escapa dessa estratégia. Todos os dias vemos notícias de trabalho análogo à escravidão, principalmente no interior e zonas ruais, porém não só nelas. Temos ainda a insistência na desvalorização do trabalho doméstico, exercido majoritariamente por mulheres negras e nordestinas migrantes”, denuncia.
Escravização 2.0
Segundo ela, há ainda em atuação a versão mais moderna de escravização, a chamada “uberização” do trabalho. Nessa vertente, o trabalhador não é mais um empregado e, mesmo tendo a oportunidade de atuar na hora que quiser, há a criação de um trabalhador informal que é vigiado por algoritmos.
“Ou seja: você pode mapear o trabalho de 200 mil motoboys, distribuí-los no espaço e determinar o valor do trabalho. A uberização é um processo de formalizar monopólios e informalizar. Ao mesmo tempo, são formados monopólios de empresas que possuem todo esse poder nas mãos e de trabalhadores cada vez mais informais”, esclarece.
A professora aponta ainda como forma de escravização repaginada, o discurso do empreendedorismo, que atua para mascarar o desemprego e o trabalho informal. “Isso tudo é somado ainda às políticas de governo dos últimos quatro anos, que insistiu na usurpação dos direitos trabalhistas da população brasileira”.
Políticas Públicas
Ainda de acordo com Yordanna Lara, o maior rastro da escravização no Brasil atual é o racismo estrutural que está enraizado nas instituições e nas estruturas políticas, sociais e econômicas do país. “O racismo estrutural leva a certeza da impunidade diante do racismo individual, que se manifesta no formato de injúria racial”, explica.
Vale lembrar que a injúria racial é a ofensa contra a honra de uma pessoa, por conta de sua cor, raça, etnia ou origem. É um crime contido no Código Penal, parágrafo 3. do art. 140. Já o racismo, é um crime que foca na ofensa a toda a coletividade de uma raça, e para puní-lo foi criada uma lei especial, a de nº 7.716/89.
E, para combater tanto a injúria como o racismo estrutural, como as formas de escravização modernas, a professora explica que é preciso políticas públicas de reparação histórica. “Significa que precisamos, a partir do diálogo direto com a população negra e indígena, dar representatividade real a esses povos nos espaços de poder político e judiciário, buscar desobstruir o caminho de acesso dessas populações a seus direitos básicos garantidos na Constituição. Que ironicamente, é nomeada de constituição Cidadã”.
Quando se fala de representatividade um nome importante da causa da equidade racial, integra a equipe de transição do governo Lula. Trata-se da coordenadora a nível naconal do Movimento Negro Unificado (MNU), Iêda Leal. Ao DM, ela contou que sua colaboração no grupo visa criar políticas públicas que garantam aos negros, trabalho, renda e segurança e combate ostensivo ao racismo do qual o corpo negro está sugeito no Brasil.
“Precisamos fazer isso em diálogo no governo federal, no estado e no município, a lei contra o racismo tem que ser cumprida. Estamos nesse país há mais de 500 anos, há mais de 300 fomos escravizados, e quase 200 sofrendo um racismo incontrolável. Estar na equipe de transição traz a sensação de que estamos sendo ouvidos, após todos esses anos de interrupção das políticas públicas”.
Mas Iêda Leal conta que há mais o que celebrar. Com os 44 anos da miltanca do MNU, a coordenadora vê nascer uma nova geração que sabe se defender do racismo. “Vejo jovens que estão denunciando este tipo de crime, pois não queremos mais conviver com o racismo, queremos ser livres. Esse 20 de novembro é o das nossas vidas, com o retorno de Lula e a saída de pessoas que não cuidam das questões raciais no país”.
Quilombolas lutam por terras, saúde e educação
Um símbolo de resistência da ancestralidade dos negros que foram escravizados são os quilombos, que estão espalhados por diversas regiões do estado. Conforme conta a quilombola kalunga Lucilene Kalunga, que atua há mais de 15 anos como liderança na comunidade, hoje já há conhecimento de 58 comunidades quilombolas certificadas pelo Governo Federal, através da Fundação Cultural Palmares.
A primeira contagem dos quilombolas está sendo realizada neste ano. Mas, conforme contagem feita no processo de certificação, das comunidades vinculadas às associações acredita-se que há cerca de 25 mil famílias quilombolas em Goiás.
Lucilene explica que a maioria dos quilombos são rurais, que estão em grande maioria na região nordeste de Goiás, a exemplo da Região Kalunga - maior território quilombola do país - que envolve as regiões de Cavalcante, Terezina de Goiás e Monte Alegre. “Temos também próximo a Alto Paraíso o Quilombo Moinho, o Quilombo do Forte, em São João da Aliança, em Colinas do Sul tem o José de Coleto, entre outros”, detalha.
“Nenhum quilombo é igual ao outro. Nos rurais, a vida é como a de qualquer família que trabalha na terra: há plantações para subsistência, sobretudo de arroz e feijão, mas também de mandioca e abóbora. Muitos têm hortas nos quintais e frutas plantadas. Algumas comunidades trabalham com artesanato, utilizando a palha e a madeira. E o convívio entre as famílias é pensando no coletivo”
Cidades como Aparecida de Goiânia, Uruaçu, Piracanjuba, Professor Jamil, Niquelândia possuem quilombos urbanos. Eles são reconhecidos a partir do núcleo familiar, o que mantém tradições culturais, como festas, folias, rezas e gastronomia local. “Não dá para colocar as comunidades no mesmo pacote, cada uma tem sua diversidade, de acordo com sua geografia. A maioria das comunidades predomina o catolicismo, mas têm comunidades evangélicas e de religiões de matrizes africanas”, salienta.
Necessidades
Quanto às maiores necessidades dos quilombolas, Lucilene Kalunga explica que são muitas. A maior delas diz respeito à política de regularização fundiária. “Precisamos do título definitivo das terras onde residem e seus antepassados moravam. O governo federal e estadual precisa garantir esse direito”.
Outra melhoria básica que aponta são na saúde e educação. “As comunidades precisam ter PSF e Cais e na área da educação é preciso melhorar a estrutura e os conteúdos. Nas aulas, a ancestralidade deve ser passada de forma positiva e não negativa como tem acontecido"
Segundo a professor Yordanna Lara, os termos corretos, para que seja quebrado o paradigma linguistico racista de entendimento da história do povo negro e do povo indgena são: Escravização Escravizados.
“A história desses povos não começa a partir dessa brutal e violenta dominação. São povos milenares, guerreiros, criativos e sábios. São suas ciências e saberes que ordenam a civilização humana E ainda mais: a história desses povos não se encerra nisso. Sua resistência e luta, seguem”, orienta.
Fui vítima de racismo. O que fazer?
Disque 190. Em casos de agressão (seja ela física ou verbal) é muito importante fazer uma denúncia.
Se o crime está acontecendo, ligue para a Política Militar. Se puder, reúna as testemunhas que estavam no momento, e aguarde a polícia chegar.
A denúncia contra crime de racismo pode ser feita em qualquer delegacia e naquelas especializadas em crimes raciais e de intolerância. Vá até a delegacia mais próxima e preste uma queixa.
Se a queixa for registrada corretamente, o caso será encaminhado ao Ministério Público, logo após o inquérito. Ele irá tomar as providências essenciais para abrir o processo criminal.
No caso de crime na internet tire prints da tela e guarde. Logo após isso, procure a delegacia mais próxima e preste uma queixa.