Cientistas brasileiros publicam estudo com potencial revolucionário em importante revista científica, mas pesquisas podem parar por falta de recursos
RIO – Nos livros de biologia, a aparência “enrugada” do cérebro humano é explicada pela necessidade de encaixar seu grande córtex - as partes mais externas do órgão, responsáveis por nossas mais avançadas funções cognitivas - no limitado espaço disponível na caixa craniana. Isso permitiria que o córtex cerebral tivesse um maior número de neurônios, o que se traduziria em uma maior inteligência. O problema é que esta intuitiva hipótese carecia de testes e comprovação, principalmente tendo em vista o fato de que alguns mamíferos, em especial cetáceos, como baleias e golfinhos, e elefantes terem cérebros não só maiores como mais “enrugados” do que os humanos, mas menos neurônios corticais, enquanto outros com córtex também grandes e desenvolvidos não apresentam estas dobras, como os peixes-boi.
Diante disso, a neurocientista Suzana Herculano-Houzel, chefe do Laboratório de Neuroanatomia Comparada do Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ, e o físico Bruno Mota, professor também na UFRJ, tiveram uma ideia: e se a proporção das chamadas circunvoluções cerebrais, isto é, o “índice de girificação” do cérebro, não tivesse nada a ver com o número de neurônios no córtex em si, mas fosse sim uma simples função entre sua área e espessura, tal qual uma folha de papel pode ser amassada em um volume menor e com mais dobras do que duas, quatro, seis, oito ou mais folhas empilhadas, mantendo a mesma área total de superfície, e só então amassadas?
Após analisarem dados sobre a morfologia e número de neurônios do córtex de dezenas de espécies de mamíferos - desde as que têm cérebros pequenos sem dobras (lisencefálicos), como camundongos, às com cérebros grandes e com muitas dobras (girencefálicos), como humanos, cetáceos e elefantes -, os cientistas brasileiros descobriram uma fórmula, inspirada no processo de amassar folhas de papel, que consegue não só explicar porquê alguns animais não têm ou têm mais ou menos giros cerebrais como prever o seu desenvolvimento em exemplares adultos das mais diversas espécies de mamíferos, além de finalmente encaixar num mesmo padrão os chamados “pontos fora da curva” das hipóteses anteriores sobre isso, ou seja, os próprios humanos, cetáceos, elefantes e peixes-boi.
- É física pura – conta Suzana, principal autora de artigo sobre a descoberta, publicado na edição desta quinta-feira da respeitada revista “Science”. - Durante seu crescimento, o córtex é submetido a diversas forças que atuam de fora para dentro e de dentro para fora, como a pressão do líquido cefalorraquidiano e a resistência das fibras nervosas, similares às que uma folha de papel sofre ao ser amassada. Isso faz com que o córtex acabe por assumir uma configuração de menor energia livre, isto é, ele vai se deformando e ajustando a estas forças até ficar com o formato mais “confortável” e estável possível. O grande diferencial de nosso estudo é que mostramos que isso resulta de uma combinação entre a área de superfície do córtex e sua espessura, numa fórmula que pôde ser testada de fato, fazer previsões e fornecer uma explicação mecânica para o que observamos na natureza. Assim, revelamos que espécies que antes eram consideradas exceções, pontos fora da curva, na verdade não são nada disso. O cérebro do peixe-boi não tem dobras porque seu córtex é muito grosso para a superfície disponível, enquanto que nos cetáceos o córtex é muito fino em relação à superfície, e por isso fica bem “amassado”.
Mas apesar de produzir um estudo com potencial de mudar os livros de biologia e publicá-lo num dos principais e mais conceituados periódicos científicos do mundo, Suzana corre o risco de ver os trabalhos no laboratório que chefia paralisados por falta de recursos. Segundo ela, no fim do ano passado o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) aprovou uma verba de R$ 50 mil - metade dos R$ 100 mil originalmente pedidos – para financiar as pesquisas durante três anos, mas até agora só pouco mais de R$ 6 mil foram liberados.
Além disso, dois projetos aprovados há meses pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) ainda não têm previsão de quanto e quando o dinheiro será liberado. Já os US$ 600 mil que recebeu em 2010 como apoio por seis anos da Fundação James McDonnell, dos EUA, estão sendo depositados na conta da UFRJ, o que a obriga a enfrentar uma enorme burocracia para acessar os recursos, que agora podem até ser bloqueados devido à crise financeira na instituição. Por fim, diz, o CNPq também adiou por tempo indeterminado a reabertura do edital de renovação do financiamento para funcionamento do Instituto Nacional de Neurociência Translacional, ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), do qual ela também faz parte.
- No momento, estou tirando dinheiro do próprio bolso e “me devendo” mais de R$ 15 mil na esperança de ver algum destes recursos liberados – conta Suzana. - É isso ou paro de trabalhar, interrompo os projetos e a formação de pesquisadores no laboratório. E não é por falta de competência ou má gestão. Temos vários projetos aprovados, mas a realidade é que não estamos recebendo nada, o financiamento ao laboratório acabou e estou sendo forçada a recusar alunos do Brasil e do exterior que querem fazer seu mestrado ou doutorado aqui.
Diante desta situação, Suzana já cogita até deixar o Brasil e continuar suas pesquisas em alguma instituição fora do país. Credenciais para isso não lhe faltam, já que a pesquisadora foi responsável por algumas das mais importantes descobertas recentes no estudo comparativo do cérebro humano com os de outros mamíferos e sua ligação com a cognição, publicadas em periódicos científicos internacionais de grande impacto. É dela, por exemplo, a constatação de que o número de neurônios em nosso cérebro chega a 86 bilhões, menos do que as estimativas anteriores de cerca de 100 bilhões, mas, destes, 16 bilhões estão no córtex, número bem superior, por exemplo, aos 6 bilhões de neurônios corticais dos elefantes, cujo cérebro no total soma quase 250 bilhões destas células, ou três vezes mais do que nos seres humanos.
- A vontade cada vez maior é ir embora do país, pois aqui não levam a gente a sério – reclama. - Temos reconhecimento internacional, como mostra esta publicação na “Science”, mas nenhum dinheiro. Como a ciência não dá resultados imediatos e/ou facilmente visíveis, a primeira coisa que fazem em momentos de crise como este é cortar nosso financiamento. Isto sem sequer entrar no mérito de aprovarem menos recursos do que os necessários para os projetos, como no caso do que temos com o CNPq, e mesmo assim quererem a mesma produção e resultados. Só aí já começa a “mágica” que temos que fazer para trabalhar aqui no Brasil. Os pesquisadores brasileiros aprendem a enfrentar condições tão impossíveis aqui que quando chegam em um laboratório com boas condições no exterior sua produção é extraordinária.