Em tentativa de preservar biodiversidade do Cerrado, pesquisadores querem proteção ambiental para área de cavernas. Ituglanis boticario está na lista dos que podem desaparecer
Divania Rodrigues,Da editoria de Cidades
OCerrado sendo um bioma único no mundo possui uma diversidade de seres endêmicos, dos quais muitos ainda não foram catalogados pela ciência. De Goiás para o mundo, um dos últimos a ser descoberto é o peixe batizado como Ituglanis boticario. Com menos de 10 centímetros, só pode ser encontrado nas cavernas Gruna da Tarimba, na cidade de Mambaí, nordeste goiano.
Por viver em um ambiente único, o peixe evoluiu e se adaptou de modo a viver exclusivamente no local. Por isso e pela degradação ambiental nos arredores da caverna que habita, já foi encontrado em estado de ameaça de extinção. Maria Elina Bichuette, do departamento de ecologia e biologia evolutiva da Universidade Federal de São Carlos, é uma das pesquisadoras responsáveis pela descoberta e explica que o animal é de uma das famílias do conhecido bagre.
Maria Elina ressalta que quando uma espécie é endêmica – restrita a um habitat – ela já é considerada frágil, mas quando o ambiente em que vive é um sistema de caverna, a vulnerabilidade é ainda maior. Isso porque as cavernas são núcleos não muito extensos, sem ter ligação com outros sistemas, abrigando uma população pequena do animal.
A pesquisadora conseguiu um espécime do peixe ainda em 2004, mas os estudos começaram somente a partir de 2012, quando encontrou uma população maior. Em 2013, com o apoio da Fundação Boticário de Proteção à Natureza, a pesquisa foi aprofundada, com expedições às cavernas. A descoberta foi publicada na revista da Sociedade Brasileira de Zoologia, em dezembro de 2014 e como homenagem o peixe foi batizado como Ituglanis boticario.
Proteção
Por estar ameaçada de extinção, a nova espécie necessita de proteção. Para os especialistas, uma das formas de promover a continuação do I.boticario é preservar seu habitat natural – o sistema de cavernas Gruna da Tarimba. Para tal seria necessária a criação de unidades de conservação. De acordo com Maria Elina, uma proposta de unidade de conservação para proteção integral do local foi enviada em novembro de 2014 ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), órgão responsável pela gestão das unidades de conservação federais.
Até o momento nenhuma resposta havia sido obtida pelos pesquisadores. Porém, a pesquisadora aponta que houve interesse estadual para a criação de uma reserva. Eric Rezende Kolailat, gerente de áreas protegidas, da Secretaria do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos (Semarh), esclareceu que uma conversação foi iniciada com os pesquisadores nesse sentido.
De acordo com ele, ainda é preciso combinar os procedimentos e estudos técnicos, mas que a secretaria viu a descoberta como uma oportunidade, pois está sempre à procura de novas áreas para colocar sob guarda, especialmente as de cavernas. Emílio Calvo, atualmente secretário de Meio Ambiente de Mambaí, informou à reportagem que a localização da Gruna da Tarimba fica dentro da Área de Preservação Ambiental (APA) das nascentes do Rio Vermelho, criada em 2001.
Emílio, que é espeleólogo e trabalha na área de turismo há muitos anos, ressalta que é preciso proteger mais o local com a criação de um Parque Nacional ou Estadual. Maria Elina destaca que a unidade de conservação mais próxima é o Parque Estadual de Serra Ronca, a 60 ou 70 quilômetros em linha reta. A pesquisadora lamenta o Cerrado sofrer mais com a ação predatória e não ter tantos incentivos à preservação como outros biomas brasileiros: “Ninguém dá muita bola, mas é um bioma único no mundo.”
Com 11.173 metros mapeados, a Gruna da Tarimba é a segunda maior caverna de Goiás e a sexta no Brasil, conforme a Sociedade Brasileira de Espeleologia (SBE). Ao todo, o Estado possui 712 cavernas cadastradas atualmente pela SBE. De acordo com Maria Elina, o nordeste do Estado é rico em cavernas e em biodiversidade e que em Mambaí este é o segundo novo peixe catalogado. Fora estes, ainda foram descobertos outros sete nas cavernas do Parque Estadual de Terra Ronca. Com 28 espécies catalogadas, o Brasil é o segundo país em quantidade de peixes subterrâneos, atrás apenas da China, com 40.
Ameaça
De acordo com os pesquisadores, em uma contagem feita em uma área de 200 metros no rio subterrâneo que passa pela gruta, foram encontrados de 20 a 30 peixes adultos. Para Maria Elina é uma população pequena e reflete a ameaça ao sistema: “O entorno do local já foi bastante impactado pela agricultura e pecuária de subsistência.”
Os peixes são carnívoros – se alimentam de larvas de insetos e outros pequenos invertebrados e até matéria em decomposição – e dependem de alimentos levados pela água da chuva para dentro da caverna. A espécie é considerada essencial para manter o equilíbrio biológico já que impede a proliferação de suas presas.
Porém, com o entorno de seu habitat desmatado, o solo diminui a capacidade de drenar água para dentro da caverna, além do uso de agrotóxicos e pesticidas, o que diminui a quantidade de alimento disponível. Outro impacto ao meio em que os peixes vivem é a urina do gado criado na região. De acordo a pesquisadora, a ureia liberada na água pode contaminá-la com grandes concentrações de amônia, que é uma substância tóxica.
Peculiaridades do I.boticario
O novo peixe é rosa claríssimo, quase transparente, por causa da pouca pigmentação, e mede menos de 10 centímetros. Possui o corpo fino e alongado, olhos pequenos – por viver em um ambiente escuro e ter a visão menos desenvolvida –, mas seus bigodes são alongados, para sentir o ambiente ao redor. Os bigodes são sensores de cheiros, com o qual busca alimentos e parceiros reprodutivos.
Outra peculiaridade da espécie é a presença de pequenos dentes (odontoides) bem desenvolvidos localizados próximos às brânquias, com os quais se fixam às pedras para evitar ser levado em correntezas.
De acordo com os pesquisadores responsáveis pela descoberta, o I.boticario é uma espécime que está sempre em atividade, ao contrário de outros que vivem entocados. Isso ocorreria por causa da escassez de alimento nas cavernas, o que os motivaria a procurar mais.
O troglóbio, definição para animais que vivem em cavernas ou ambientes semelhantes, pertence ao gênero Ituglanis, que concentra peixes que vivem apenas em cavernas.