Na noite de domingo do dia 10 de maio, de acordo com boletim de ocorrência, o sargento da Polícia Militar Elson de Souza Dias, 44, trafegava em seu Ford Ka pela Rua São Vicente de Paula, no Bairro Ipiranga, próximo ao Terminal Padre Pelágio, em Goiânia. Na porta do Motel Haiala, em frente a uma igreja Assembleia de Deus e uma lanchonete, ele teria matado com dois tiros Sabrina Lopes, 18, travesti que fazia programas na região.
O policial alega legítima defesa. Em seu depoimento diz que estava no lugar à espera de uma namorada, quando em frente ao motel começou a conversar com algumas travestis, que o surpreenderam tentando assaltá-lo.
Uma delas teria entrado no carro, roubado R$ 800 de sua carteira e a chave do veículo. Outra tentou imobilizá-lo pela janela com um “golpe mata-leão”. Para se defender usou sua pistola calibre 40.
Elson teria ligado para uma viatura da PM e se apresentado espontaneamente para os policiais. Em seguida, um grupo de travestis atacou o seu automóvel com pedras e pedaços de concreto. O gerente do Motel Haiala confirmou seu depoimento. A reportagem não conseguiu contato com o suposto autor da agressão.
O porta-voz e chefe de comunicação da PM, tenente-coronel Ricardo Mendes, disse que Elson trabalha como policial há mais de 25 anos e que sempre apresentou boa conduta.
E.R, 27, que prefere não se identificar na reportagem, depôs e relatou uma versão diferente do caso. Na verdade, conforme esta versão, Sabrina teria tentado intervir em uma briga do policial com outra travesti, que pediu socorro. A testemunha afirma não ter visto ninguém “engravatar” o policial e que ele não assumiu a autoria do crime inicialmente.
Dois moradores da região, que também preferem não se identificar, disseram que os rumores no bairro são de que Elson estava com uma das travestis dentro do carro e que se desentenderam porque ele não queria mais o programa. “Se tirou do ponto, tem que pagar. É a regra delas”, explicou um dos moradores as normas da prostituição no lugar.
Tanto o depoimento do homem quanto a versão dos dois moradores, que ouviram os disparos, confirmam que houve um intervalo de cerca de um minuto entre um tiro e outro. O primeiro acertou o peito de Sabrina e o segundo atingiu o rosto.
Investigação
O caso está na responsabilidade da Delegacia Estadual de Investigações de Homicídios (DIH). Foram ouvidas quatro pessoas, incluindo a mãe da vítima, que vive em Cuiabá. Para o inquérito ser concluído é aguardado o laudo pericial da polícia técnico-científica. A corregedoria da PM não vai acompanhar o caso, porque o tipo de delito não é caracterizado como crime militar.
Uma câmera da Guarda Civil está posicionada exatamente em frente ao local do crime, mas, de acordo com o delegado responsável pelo inquérito Matheus Melo, a câmera só é usada para monitoramento ao vivo e não grava.
No boletim de ocorrência, a primeira frase da descrição do crime diz que “A vítima tem vida promíscua (travesti)”. Questionado sobre a redação do texto, o delegado explicou que é corriqueiro fazer uma pesquisa sobre a vida anterior da vítima e do autor. “A gente procura a vida regressa dela, se tem passagem, o que é envolvido. É travesti da região lá, então dá pra saber que é envolvido, pode ser envolvido, com alguma coisa lá”, diz Matheus.
A presidente da Comissão de Direito Homoafetivo da OAB-GO, advogada Chyntia Barcellos, entende que essa descrição da vítima tem característica preconceituosa. “A simples menção desse juízo de valor em um boletim de ocorrência já é atentatório à dignidade da pessoa humana, já é discriminatório”, diz.
O delegado afirma ter investigado informações de que os travestis da região são acostumados a cometer roubos de seus clientes ou de quem passa por lá. Dois moradores do bairro contaram que existia um grupo de travestis de Brasília que efetuava roubos na área durante os finais de semana. Entretanto, depois que esse grupo se ausentou, a convivência com as travestis é tranquila.
Matheus também foi o delegado responsável pela investigação da morte da travesti Luana Viana, atropelada propositalmente no mesmo lugar, em junho do ano passado. O suspeito foi preso em abril e aguarda julgamento.
SEM PESQUISA
Hoje não existe uma pesquisa por parte do poder público que demonstre as condições das transexuais em Goiás. “Temos dados que são mapeados pela Secretaria de Direitos Humanos, mas ainda é incipiente”, aponta a advogada Chyntia, a ausência de dados da área de segurança pública que permitem conhecer aspectos das vítimas.
Os relatórios do blog “Quem a homofobia matou hoje” - que coleta informações de forma compartilhada a partir de notícias jornalísticas - apontam que houve um aumento do homicídio de transexuais em Goiás. Em 2013 foram mortos quatro travestis no Estado; em 2014 foram seis.
Chyntia diz que o poder público tem desenvolvido políticas públicas para essas minorias, mas ainda é pouco. “O que temos hoje é o uso do nome social, que é permitido através do SUS”, explica.
Para ela, as travestis estão em situação de invisibilidade para o Estado. “A evasão escolar com relação às pessoas travestis e transexuais é imensa. Isso provoca o trabalho na qualidade de prostitutas como acontece”, diz.
Em janeiro, uma medida da prefeitura de São Paulo causou polêmica ao oferecer uma bolsa de R$ 840 para travestis completarem seus estudos ou realizarem cursos profissionalizantes.
Uma vida nas ruas
O sol a pino e o horário de almoço não impedem A.K, 27, de fazer ponto na mesma rua em que Sabrina foi morta, próximo ao Motel Haiala. A região do setor São Francisco tem movimento de prostituição durante todo o dia, mas é mais intenso à noite. Algumas ruas são das mulheres e outras das travestis.
A.K trabalha no lugar desde os 20 anos. No começo foi convencida por uma amiga, que já trabalhava na área. Chegou a tentar emprego no mercado formal, mas disse que não aguentou. “Além de a gente ser tratado que nem bicho, sofre muito preconceito e ganha muito pouco. Tenho uma família grande para sustentar”, disse.
Reclama da violência de alguns clientes, que não pagam após o programa, e chegam a mostrar armas de fogo para intimidar. Mas também reclama de algumas colegas de profissão. “Aqui tem muita travesti vagabunda que rouba”, conta.
Seu plano é sair da prostituição ainda esse ano. Disse ter juntado dinheiro e que vai comprar uma pousada, onde o público alvo serão as transexuais. A média do preço de um programa é entre R$ 70 e R$ 100*.
ELAS CONVIVEM COM CENÁRIO DE VIOLÊNCIA
Não é a primeira vez que travestis são mortas na região do Setor São Francisco em Goiânia. Foram ouvidos relatos de várias formas de violência no lugar. Tanto de travestis que se aproveitam e roubam clientes como de clientes que espancam e roubam as travestis. Moradores da região contaram três casos do ano passado. Conheça os mais recentes:
Luana Viana, 22 (10/01/2014)
Conhecida como Luana Professora, foi confundida com outra travesti que teria se desentendido com um cliente. O homem saiu, voltou ao local com uma arma e a matou.
Luana Santiago, 23 (03/06/2014)
Teve um desentendimento com o cliente, que queria cancelar o programa. Após discussão teria roubado uma corrente do homem, que a atropelou propositalmente duas vezes.
Sabrina Lopes, 18 (10/05/2015)
De Cuiabá, vivia em Goiás desde fevereiro, quando completou 18 anos. Foi morta com dois tiros na porta de um motel na região. O autor alega legítima defesa.
*Correção em relação à versão impressa