O Brasil é um país que ainda precisa descobrir o Direito. Pouco acostumado à letra, ainda mais a letra da lei, de uns tempos para cá surgiram intérpretes amalucados das normas que tentam dobrá-la às suas convicções e interesses. Assim, o Brasil nem conhece suas leis – e menos ainda consegue aplicá-las.
Mas aos poucos a Constituição Federal é introduzida nos cérebros mais obtusos, nos educando e impondo modos de viver em sociedade e respeitar a liberdade do outro. Como aconteceu ontem, em decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que derrubou a tese histriônica de que biografias – antes de circularem nas livrarias ou internet – devem ter autorização dos biografados ou seus herdeiros.
A Suprema Corte, por unanimidade, derrubou a versão de artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque e Roberto Carlos, que participaram de um levante nacional contras as biografias – talvez com temor dos seus conteúdos.
Desinformados e escorados em advogados como Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, os artistas acreditaram demais em dois artigos do Código Civil – que é uma norma aos pés da suprema Constituição, como outras 13 mil que existem por aí.
Conforme a Suprema Corte, durante a decisão ocorrida ontem, a censura não pode perdurar no Brasil. Carmen Lúcia, ministra relatora, foi no cerne da questão: “Censura é uma forma de calar a boca. Cala a boca já morreu. É a Constituição do Brasil que garante”.
Esse cala boca está tão em evidência no País que o escritor goiano Alaor Barbosa (autor de “Sinfonia de Minas Gerais — A vida e a literatura de João Guimarães Rosa”), nos últimos seis anos, sofreu coações jurídicas por conta de uma publicação que fez a partir da obra do escritor mineiro Guimarães Rosa.
Munido pela obstinação de lutar pelo seu direito, como dizia Rudolf Von Jhering em um dos seus manuais, o autor goiano foi, venceu e ainda retornou os processos que deram dor de cabeça a ele e sua família.
Em primeira instância, informa o Jornal Opção Online, ele teve a vitória contra a filha de Guimarães Rosa, que terá, de fato, a obrigação de pagar indenização por danos morais. Antes ela mexeu com quem estava quieto, obrigando Alaor Barbosa a deixar a vida de seu pai (um homem que transita na opinião pública, com vida pública e imagem arraigada ao patrimônio cultural nacional) intocável.
Por essas e outras, a partir de hoje livros e obras audiovisuais biográficas estão liberadas em todo território nacional. E sem a necessidade de permissão prévia do biografado ou de seus herdeiros.
A ação movida em 2012 pela Anel (Associação Nacional dos Editores de Livros) teve início quando Roberto Carlos decidiu retirar das livrarias “Roberto Carlos em Detalhes". O biógrafo Paulo Cesar de Araújo foi vilipendiado e agredido pela classe artística, que o execrou em seu direito fundamental de livre manifestação do pensamento.
Para humilhar o autor ainda mais, o caso teve desdobramentos recentes, quando Paulo de Araújo veio a público contradizer o compositor Chico Buarque. O cantor de “Construção” teria escrito artigo em que afirmou não ser objeto de entrevista do biógrafo. Na Folha de S. Paulo, de 16 de outubro de 2013, o constrangimento: o biógrafo publicou foto em que aparece ao lado de Chico Buarque.
A foto se chocava com a informação de Chico, que pouco contribuiu para o debate a respeito da liberdade de expressão, fora suas músicas datadas em décadas do século passado.
Para os ministros, a maluquice dos defensores de assinatura dos biografados caracteriza-se em expressa tentativa de censura. Assim, a liberdade de expressão, garantida em Constituição, seria menos importante do que a vida privada dos biografados, que a bel prazer poderiam retirar de suas vidas práticas pouco nobres ou passagens que os envergonham.
Nesta linha de pensamento é que foram dados os votos de Carmem Lúcia, Luís Roberto Barroso, Rosa Maria Weber, Luiz Fux, Dias Toffoli, Gilmar Mendes, Marco Aurélio Mello, Celso de Mello e do presidente do STF, Ricardo Lewandowski.
Ministro Luiz Fux lembrou ao advogado de defesa uma aula básica de Direito Civil: "Na medida que cresce a notoriedade da pessoa, diminui-se a sua reserva de privacidade”. E foi mais longe, comparando os artistas ao mesmo nível dos participantes de Big Brothers: “O que uma pessoa que participa de um reality show deve alegar a respeito de privacidade? Já que ela se permite ser filmada dormindo?”
O advogado das empresas de livro, Gustavo Binenbojm ampliou a causa: "Senhores ministros, essa não é uma causa apenas dos editores de livros, tampouco é uma causa que interessa apenas aos escritores e historiadores ou acadêmicos. Essa é uma causa da sociedade brasileira. É a causa de um país que tem pressa de se educar e se informar. É a causa de quem acredita que a ideia e as palavras podem mudar o mundo".