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COTIDIANO

Meu corpo não sou eu

Por Ariana Lobo

Jaqueline Alves não era uma menina como as outras. Não gostava das brincadeiras que “deveria”, e nem fazia as amizades que seus familiares esperavam que ela fizesse. No recreio, sempre com os meninos, brincava de futebol e “lutinha” e voltava para a sala pingando suor, tão diferente das outras meninas. Seus amigos eram em grande maioria os meninos. Se via como um deles, pois se sentia como um deles. Nas brincadeiras, ela sempre escolhia ser o Power Ranger vermelho. “Mas ele é homem!”. Não importava. O que ela queria mesmo era ser o vermelho, e fim.

As vezes que usou vestido foi porque colocaram nela quase que à força. Sandália nem pensar. Preferia muito mais um chinelão ou um bom e confortável tênis. Fazer unha? Arrumar o cabelo? Isso não era mesmo o forte dela.

Ela? Na verdade ela nunca se sentiu “ela”. Desce criança notou que havia algo errado, pois o corpo dizia que ela era uma menina, mas ela sempre se sentiu como um menino. Jaqueline, agora com 25 anos, é Júlio César.

Ela não era “ela”

A descoberta de sua condição, a transformação física e a reação dos amigos e familiares não foram fáceis, mas Júlio César concordou em conversar sobre isso, desde que fossem utilizados nomes fictícios.

“Eu já sabia que tinha gostos e comportamentos masculinos desde criança, porém não entendia sobre a possibilidade de um tratamento. Descobri através de uma palestra sobre o tema que eu fui por acaso, a partir desse dia comecei a pesquisar sobre o assunto e então eu finalmente entendi tudo”, conta.

O “tema”, no caso, era a transgeneridade. Transgênero é a condição na qual a identidade de gênero de uma pessoa não coincide com o gênero fisiológico dela, ou seja, ela nasceu com o gênero “errado”.

Nessa época ela estava com 19 anos, e então se viu em conflito. Após muito pesquisar, descobriu a existência de um tratamento de mudança de sexo gratuito pelo Sistema Único de Saúde (SUS), mas que só poderia começar a fazer com 21 anos, sendo que 2 anos de terapia eram obrigatórios antes do início dele.

Ela então começou a fazer a terapia escondido dos pais. Inventou que estava pegando aula de música para justificar as saídas frequentes. Os pais não davam abertura para que Jaqueline puxasse uma conversa sobre o assunto. Quando tentou, o pai riu e disse que aquilo não existia, era “frescura”. “Eles não me entendiam, e então fui sufocando”, conta. A falta de compreensão e abertura das pessoas que ela mais precisava naquele momento a levou a tomar medidas extremas.

Começar de novo

Jaqueline decidiu então que teria que sair de casa, arrumar um canto só pra ela. Essa perspectiva a animava, pois ela finalmente poderia ser ela mesma. Sonhava com o dia no qual teria sua casinha, se vestiria como ela quisesse, se portaria como quisesse, conviveria com quem quisesse, livre dos olhares inquisidores que a tinham transformado no que ela não era. “Mas essa é a pior parte”, conta, “não gosto de ficar lembrando”.

A saída da casa dos pais foi o momento mais difícil. Tudo foi planejado às escondidas. Alugou casa, longe. Comprou móveis. Combinou preço com caminhoneiros. Tudo no horário das aulas de música, que ela dizia terem se tornado mais frequentes por conta de ensaios para apresentações.

Encaixotou suas coisas fechada no quarto, que ela mantinha trancado. Quando chegou o dia da mudança foi preciso reunir toda a coragem que ela não tinha. Os pais, pegos de surpresa, choraram e gritaram, tentando impedir os carregadores de levarem as caixas para o caminhão. Estavam desorientados.

Ela, entretanto, foi firme, manteve sua decisão. Afinal, ela já tinha ido demasiadamente longe para pensar em voltar atrás. Jaqueline agora finalmente estava em sua tão sonhada casinha. Mas estava em ruínas. “Quando me mudei não aconteceu nada do que eu havia sonhado. Quase voltei pra casa dos meus pais. Eu chorava o tempo todo porque me sentia muito só. Comprei um cachorro para ver se me ajudava, mas era angustiante do mesmo jeito. Só melhorou quando eu comecei a trabalhar, porque ai ocupava a cabeça com outras coisas”, recorda.

Em busca de mim mesmo

Jaqueline começou a tomar os hormônios aos 19 anos, paralelamente ao tratamento psicológico. “Eu não aguentava de ansiedade para começarem as mudanças no meu corpo. A primeira coisa que mudou foi a minha voz, depois de três longos meses do início da hormonização. Depois de outros longos meses vieram os pelos no corpo. Eu comemorava cada pelinho que nascia no meu rosto”, relembra.

As mudanças provocadas pelo hormônio deixavam Jaqueline cada dia mais perto do seu verdadeiro eu. Mas também renderam boas risadas. “Uma vez eu liguei para a minha mãe, ela não reconheceu a minha voz e perguntou quem estava falando. Na outra vez eu liguei para alguém e o telefone deu aquele eco em que a gente escuta nossa própria voz. Daí eu assustei e olhei pro celular com os olhos arregalados pensando: 'quem atendeu? Meu Deus, essa é a minha voz?'. Foi muito engraçado”. E explica: “Nessa época eu tinha acompanhamento da fono, que passava exercícios para engrossar e estabilizar a voz”.

Durante um período, a meio tempo da transformação física, ela ficou com uma aparência andrógina, o que rendia constrangimentos constantes. “No início do tratamento eu tive uma fase mais agressiva, sabe, se me olhassem torto eu já queria sair na porrada. Tive que me segurar muito nessa época. Fiquei menos sentimental também. Mas com o tempo tudo foi equilibrando, a agressividade, a sentimentalidade”.

Nesse período a relação com a família deu uma melhorada. O pai não perdoou, não aceitava a condição da filha que ele “não criou pra isso”, mas passou a respeitar, já que não tinha outro jeito. A mãe, acabou virando parceira, amiga para todas as horas. “Nessa fase eu tive apoio da maioria das pessoas com as quais eu convivia, elas me respeitavam muito”, conta.

E então chegou o momento das cirurgias que a levariam finalmente ao corpo desejado. Aos 23 anos ela fez a histerectomia (retirada do útero), e aos 24 fez a mastectomia (retirada dos seios). Cortou o cabelo bem curtinho. Comprou cuecas, camisas, e sapatos sociais. A barba já fazia volume. Ela finalmente era ele.

Enfim, Júlio César

Ela, que agora já havia se tornado “ele”, passou a adotar o nome social: Julio Cesar. “A época que abandonei meu nome de batismo e passei a usar meu nome social foi muito difícil porque as pessoas não estavam acostumadas a me chamar de Julio, afinal, eu era a ‘Jaque’ e todos estavam acostumados a me chamar assim. Eu corrigia por meio de brincadeiras e aos poucos as pessoas foram acostumando”, recorda.

Foi preciso muito jogo de cintura para lidar com os contratempos dessa época, principalmente com a falta de compreensão das pessoas. “Um antigo chefe se recusava a me chamar pelo meu nome masculino, dizendo que ‘aquele não era meu nome’. Fiquei triste, mas ignorei a atitude dele. Com o tempo, como todos os outros funcionários me chamavam de Julio, ele acabou cedendo”.

Momentos constrangedores são muito comuns até hoje no cotidiano dele. É preciso sair de casa já preparado todas as manhãs: “Todas as vezes que preciso apresentar meu documento em algum lugar passo por constrangimentos. As dificuldades aparecem nas situações mais corriqueiras, como responder a chamada da faculdade, ou fazer um exame médico, ou num embarque de algum vôo”.

Júlio recorda que um médico da rede pública chegou a se recusar a atendê-lo. “Ele me mandou ir no dia seguinte para ser atendido por outro médico”. Outro médico se ocupou em passar um sermão em Júlio, dizendo que o que ele estava fazendo com o próprio corpo era errado. Momentos como esse ainda são realidade na vida dele. “Essa semana um amigo apostou com outras pessoas que teria coragem de perguntar sobre o meu passado em público. Me senti mal com isso, pois ele me expôs”.

Esse mês Júlio vai finalmente modificar seu nome nos documentos pessoais. “Semana que vem vou no cartório, estou ansioso”, conta. Isso irá diminuir significativamente os constrangimentos diários que Júlio precisa enfrentar, mas não dará fim a eles. “Sou consciente que os desafios sempre irão existir na minha vida, desde quando me percebi uma criança diferente das outras”, declara ele.

Valeu a pena

O que Júlio quer que as pessoas entendam é que a sua condição, assim como a de outras dezenas de pessoas em Goiânia e no mundo, não é frescura. Não é “falta do que fazer”. Não é engraçada. Não é “falta de macho”. Muito menos dá o direito de alguém tirar sarro ou ser preconceituoso. Essa é uma realidade que por si só já rende muito sofrimento aos que se encontram em situação semelhante. “Não quis dizer meu nome verdadeiro aqui porque eu me envergonhe da minha condição, sabe. Não tenho problema com as pessoas saberem. O problema é quando falam besteira, ou pensam besteira. Tem muita gente que ainda não compreende, sabe”.

A vida de Júlio não é fácil, justamente porque ele não escolheu por ela. Apesar disso, ele mostra uma visão muito positiva da vida, faz planos para o futuro e atualmente vive e se porta como ele realmente é. “Tudo o que eu passei valeu a pena. Hoje posso comprar as roupas que eu quiser, posso agir como eu sou de verdade, sem medo de ser julgado por isso. Preconceito sempre vai existir, mas ninguém consegue viver do modo que a sociedade julga correto”, declara Julio.

Ele se considera uma pessoa finalmente realizada. Atualmente vive do lado da casa dos pais com seus três cachorros. A maioria das pessoas se acostumou a chamá-lo de Júlio e ele mantém bom relacionamento com familiares e amigos. Ele, assim como cada ser humano, deseja ser feliz, respeitado e amado. Independente de qualquer coisa. E fim.

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