É certo que o ocidente tem sido mais generoso no que diz respeito ao direito das mulheres do que o oriente. Do lado de cá, e mais especificamente no Brasil, as mulheres conseguiram direito ao voto, à licença maternidade, a se aposentar mais cedo que os homens, a se defender de um companheiro agressivo por meio da Lei Maria da Penha, à receber salários iguais aos homens que desempenham uma mesma função (pelo menos em cargos públicos), a se dedicarem a carreiras anteriormente consideradas exclusivamente masculinas. Enfim, as mulheres ganharam direito à voz, à liberdade de expressão e a afirmarem sua importância, em pé de igualdade com o gênero masculino.
Mas é certo também que nem tudo são flores. Ainda é realidade na vida das mulheres o medo de andar ou viajar sozinhas sem “estar pedindo para serem estupradas”, o medo de se vestir como achar que deve e acabar “dando motivo para ser assediada”. Ainda é realidade a sexualização do corpo da mulher, é realidade o fato de elas serem culpabilizadas quando ocorre algum assédio, assim como é realidade os olhares e “fiufius” que recebem diariamente e fazem com que se sintam um pedaço de carne exposto em uma vitrine ao alcance de toda e qualquer mão. É realidade diária também todos os pequenos assédios que as mulheres sofrem e que acabam passando despercebidos, pois são tratados como normais até mesmo pelas próprias mulheres.
Por mais que existam leis que amparem a mulher, ainda existem muitos casos de assédio, estupro, desrespeito em ambientes de trabalho, além das agressões física e psicológica por parte de companheiros. Isso sem contar o esteriótipo criado sobre a imagem da mulher que faz com que muitas delas se sintam mal todos os dias por não querer ser mães, em não gostar de rosa ou em não ter vaidade.
Há um lado não comemorável no Dia Internacional da Mulher que precisa ser recordado. Pelas mulheres que foram queimadas na inquisição acusadas de bruxaria, pelas operárias queimadas na fábrica enquanto lutavam por melhores condições de trabalho, mas também pela Julia, Izabela ou Cláudia, que acabou de ser assediada por um homem qualquer na rua nesse exato momento apenas por ser mulher.
Pensando nisso, a reportagem do Diário da Manhã procurou histórias que remetam ao lado não comemorável da data e que mereçam ser compartilhadas como exemplo de superação, aprendizado e força do comumente denominado “sexo frágil”.
3 em cada 5 mulheres jovens já sofreram violência em relacionamentos, aponta pesquisa realizada pelo Instituto Avon em parceria com o Data Popular (nov/2014).
Agressão não é apenas física
“Durante esse relacionamento eu era constantemente lembrada de que não tinha valor nenhum, de que não era tão bonita quanto as outras mulheres com quem ele já havia se envolvido, que não tinha o comportamento correto, que não era inteligente o bastante. Ele estava comigo porque por algum milagre me amava, ele fazia esse favor imenso em me amar, me afirmava sempre que ninguém nunca mais ia gostar de mim, afinal eu era desequilibrada, sempre errava, me vestia como uma prostituta e pintava minha cara como uma vagabunda qualquer (palavras dele)”, recorda ela.
Com o passar do tempo, Bárbara foi acreditando no que ouvia tão constantemente do namorado e, por mais que fosse avisada por amigos e familiares, não conseguia se desvencilhar dele. Além de acreditar que o amava, ela sentia medo de ficar sozinha caso terminasse, de não ser ninguém sem ele, mas principalmente, havia a crença de que se ela o amasse mais, se dedicasse mais, tolerasse e aceitasse mais, ele veria o quanto ela o amava, e mudaria.
Bárbara abandonou a faculdade de fisioterapia no quarto semestre pois se o namorado repetia tantas vezes que ela seria uma profissional desastrada e fracassada, é porque isso deveria mesmo ser verdade. Se afastou de amigos, abandonou empregos e começou a sentir que se afundava em uma depressão. “Quando ele viajou em um intercâmbio e me pediu para tirar uma foto nua para que ele visse se eu estava depilada ou não, porque se eu me depilasse estava ‘dando’ para outro cara como a vagabunda que ele sabia que eu era (novamente palavras dele), eu me dei conta que se havia uma chance de ir embora desse relacionamento era naquele momento”, Bárbara relembra.
Ela acredita que só conseguiu colocar um ponto final nesse relacionamento por causa da distância física entre ela e o namorado, durante o intercâmbio dele. “A ausência dele me deu forças e tempo para me reerguer. Comecei a fazer terapia e me dei conta de que fui estuprada várias vezes por um cara que dizia me amar nos quase dois anos e meio de relacionamento”, explica ela.
Bárbara, que teve alta recentemente do tratamento com remédios, voltou para a faculdade e voltou a namorar (está atualmente em um relacionamento não abusivo) conta que o estudo do feminismo a ajudou a se reerguer. “O feminismo me fez entender, dentre muitas outras coisas, que eu mentia para mim quando dizia que poderia consertá-lo com meu amor porque a mulher é ensinada a pensar assim desde sempre, que paciência e aceitação são qualidades femininas”, explica ela.
48% das mulheres agredidas declaram que a violência aconteceu em sua própria residência; no caso dos homens, apenas 14% foram agredidos no interior de suas casas (PNAD/IBGE, 2009).
Como nasce uma feminista
Presenciar cenas de agressões contra o ser que mais amava no mundo fizeram Izabela, assim que passou a enxergar os acontecimentos de modo mais crítico, a levantar a bandeira do feminismo. “Uma vez ele pegou a minha mãe e arremessou contra o guarda-roupas. Essa foi a cena que mais me marcou, pois vi minha mãe chorando como nunca, no chão. Fiquei traumatizada com tudo o que vi e ainda não perdoei meu pai por isso”, relembra ela.
A mãe de Izabela sofreu por muito tempo ao lado do marido. Não contava para ninguém o terror que vivia dentro de sua própria casa. Era cúmplice das agressões sofridas contra ela mesma em nome do amor que sentia pelo que era ao mesmo tempo marido e carrasco. “Meu pai era inconsequente, minha mãe realmente tinha motivos pra brigar. Mas na hora da briga ela quem era a ‘vagabunda’, ‘vadia’, e a que não me criava direito”.
Após o fim traumático do casamento, a mãe de Izabela voltou a namorar, mas atualmente está solteira. “Ela diz que se for pra colocar homem dentro de casa pra dar dor de cabeça é melhor deixar quieto. Mas ela está feliz. Temos uma a outra”, finaliza Izabela.
Salários iguais, exigências diferentes
Kátia Gonçalves (nome fictício), 30 anos, conta à reportagem do Diário da Manhã que há alguns meses foi contratada por uma grande empresa do Centro Oeste para trabalhar como analista. “Um dos sócios além de assediar moralmente as funcionárias também era cheio de gracinhas sexuais. Como nunca participei das pegadinhas de conotação sexual descobri que ele havia contratado outro consultor para ganhar o mesmo salário que o meu. Quando perguntei o motivo de uma consultor ganhar o mesmo valor de uma analista fui informada que para a analista ter aumento ou ganhar melhor teria que oferecer algo que o consultor não poderia”.
Ela conta que se sentia nua todas as vezes que precisava conversar ou mesmo passar perto do diretor. E que após recusar-se a se envolver sexualmente com ele, acabou sendo desligada da empresa.
Viajar sozinha é perigoso
“As vezes recebo elogios após shows sobre minha performance na bateria. Eu nunca sei se dizem que eu toco bem porque eu realmente toquei bem ou se, por ser mulher, eu surpreendi. Se eu fosse homem e tocasse exatamente da mesma forma que toco, será que ouviria os mesmos elogios?”, questiona ela.
Pelo modo de se vestir e se portar, além da quantidade de amigos homens que possuía, a orientação sexual de Helena passou a ser alvo de curiosidade. “Dizer que eu era sapatão era (e ainda é) o mínimo que eu ouvia quando queriam me ofender, ou ‘falar verdades’ que nunca foram verdades, pois sou heterossexual”, desabafa Helena, que acha irônico o fato de sua irmã (que toda a vida seguiu todos os padrões femininos) ser homossexual e muita gente nem imaginar.
Helena revela que sempre nutriu o sonho de viajar sozinha. Após duas experiências bem sucedidas no Rio de Janeiro, ela decidiu que conheceria Londres. “Quando eu dizia que iria sozinha eu ouvi gente dizendo que sou louca por fazer uma coisa dessas, outras pessoas se dizendo admiradas pela minha coragem em viajar sozinha”, recorda ela.
Ela conta que ainda hoje quando conta sobre essa viagem percebe que as pessoas ficam espantadas. “Algumas pessoas mais diretas me perguntam se eu não achava perigoso viajar sozinha, se eu não senti medo. Eu não achei perigoso. Mas senti medo sim. A gente vê notícias todos os dias de violência contra mulheres, não só no Brasil, mas em todo mundo. Quantas e quantas histórias já tinha ouvido sobre mulheres viajantes sendo violentadas, sequestradas, desaparecidas, assassinadas? Eu tive medo sim, mas isso nunca foi motivo pra me fazer deixar de viajar”, defende Helena, que afirma que o medo a fez ficar mais alerta durante a viagem.
“O medo me fez não ‘dar bobeira’. O medo me fez gastar mais pagando taxi por não querer pegar ônibus ou metrô durante a noite voltando pro apartamento onde estava. O medo me fez andar mais rápido e sempre olhando pros lados e pra trás”, recorda ela. “Mas o medo não me impediu de fazer uma série de coisas boas que não existiriam se eu deixasse o medo e, principalmente, a opinião dos outros me comandarem”, argumenta.
Helena se pergunta se o medo que as pessoas demonstraram aconteceria se ela fosse homem. “Será que eu ouviria as mesmas perguntas que ouvi, e se veria as mesmas reações ao contar essa sobre essa viagem? Será que as pessoas iam perguntar se era perigoso? Será que ia ter essa conversa de admiração por estar sozinho em Londres?”.
56% dos homens admitem que já cometeram alguma dessas formas de agressão: xingou, empurrou, agrediu com palavras, deu tapa, deu soco, impediu de sair de casa, obrigou a fazer sexo. Saiba mais sobre as “Percepções do Homem sobre a Violência Contra a Mulher” (Data Popular/Instituto Avon 2013).
77% das mulheres que relatam viver em situação de violência sofrem agressões semanal ou diariamente. Em mais de 80% dos casos, a violência foi cometida por homens com quem as vítimas têm ou tiveram algum vínculo afetivo: atuais ou ex-companheiros, cônjuges, namorados ou amantes das vítimas. (Balanço 2014 do Ligue 180)
98% da população brasileira já ouviu falar na Lei Maria da Penha e 70% consideram que a mulher sofre mais violência dentro de casa do que em espaços públicos no Brasil. (Data Popular/Instituto Patrícia Galvão, 2013)