Delegada da mulher lamenta falta de legislação específica para punir responsáveis e diz que sociedade ainda é machista e conservadora
A divulgação de cenas e fotos íntimas de casais se tornou uma realidade que provoca transtornos para as vítimas expostas, mas está longe de sofrer punição para quem promove esse tipo de ação. A legislação brasileira não pune especificamente a exposição de intimidade de pessoas e a impunidade continua a promover novos casos de maneira contumaz.
Todas as semanas surgem novos casos de reclamação na Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher em Goiânia (Deam) que a delegada titular, doutora Ana Elisa Gomes Martins, promove a abertura de inquéritos quando o caso ainda é uma ameaça, já que a divulgação não é tipificada como crime.
“A maioria dos casos que nos chegam dizem respeito principalmente a ameaça de divulgação de cenas ou fotos íntimas, não propriamente da exposição já consumada”, explica a delegada. Por ser ameaça, portanto, uma figura típica já consolidada na legislação penal, fica mais fácil a atenção da autoridade policial para as vítimas dessas ações com a abertura de uma investigação e a consequente apresentação de ação penal nos Juizados Especiais Criminais. “Mesmo que o crime seja de menor potencial ofensivo e a pena aplicada possa ser de natureza alternativa já inibe a prática desse crime”.
Na grande parte das ocorrências houve o término de um relacionamento e os homens, principalmente, e esses indivíduos se sentem rejeitados e dispostos a divulgar cenas íntimas do casal como forma de chantagear a companheira e reatar a relação. Há variantes ainda de casos como de traição em que os parceiros querem se vingar ou que a vítima tenha reatado uma relação antiga e abandone o parceiro que esteja de posse desses vídeos ou fotos.
Alguns casos não chegam a se consumar com a publicação nas redes sociais, mas há casos em que os parceiros rejeitados com o término da relação ou traídos não se acanham em colocar para frente os segredos dos quais seja detentor. “Já vimos casos em que os indivíduos chegam a encaminhar para os atuais parceiros das vítimas as cenas cultivadas na intimidade quando ainda estavam juntos, o que é profundamente vexatório para as vítimas”.
Generalizado
A delegada vê também como disseminada a atitude de ameaçar ou divulgar cenas íntimas entre todas as idades e classes sociais. “Existem pessoas dispostas a isto em todos os níveis e idades. Primeiro é preciso avaliar que entre quatro paredes o casal é que define o que quer fazer e qual a criatividade que quer para si. Mas, infelizmente, o poder de mídia hoje é altamente democrático e de fácil acesso para todos. Além de ser de alcance instantâneo. Na medida em que você posta uma informação na internet você não tem mais domínio sobre ela e a disseminação dos vídeos ou fotos será viralizada”.
O caso mais emblemático que chegou na Delegacia de Atendimento à Mulher foi a jovem Fran Martins, em 2013, que teve vídeos postados pelo ex-namorado Sérgio Henrique Alves e que chegou a ter mais de 200.000 acessos em poucos dias, com a frase da garota de 20 anos à época ter se viralizado na internet. Sérgio foi denunciado criminalmente pelo crime de injúria e a sentença que o alcançou no Juizado Especial Criminal foi considerada ínfima: cinco meses de prestação de serviços comunitários. Fran precisou mudar todos os seus hábitos, abandonou o trabalho e hoje cuida da filha de seis anos. Quando saiu a sentença ela protestou aos prantos considerando injusta a pena, mas de nada adiantou reclamar depois que suas cenas picantes feitas pelo ex-namorado foram disponibilizadas na internet.
Fran Martins ainda deu sorte por ter encontrado uma delegada mulher e com boa disposição para dar uma resposta digna de uma autoridade a outra mulher que foi ofendida. A ofensa do ex-namorado Sérgio Henrique Alves recebeu como reprimenda a exposição dele e a repulsa social pela indignidade de ter exposto as intimidades que a namorada lhe confiara com a tipificação de injúria. Porque, em outra situação a agressão injusta passaria com a chancela da impunidade, que tem incentivado tantos outros indivíduos [há controvérsias se podem ser chamados de homens] a continuarem a expor intimidades em cenas e imagens.
Confiança
A delegada Ana Elisa Gomes Martins dá uma aula de psicologia e cuidado com a cidadania e revela não tecer qualquer comentário com as vítimas que possa sugerir uma repreensão a ela. “Eu não observo porque ela permitiu se deixar filmar, assim como não pergunto porque ela usou essa ou aquela roupa. Porque o problema não está nela, mas na índole de quem fez a cena e a tornou pública”. A delegada ainda diz que a única recomendação que pode dar às mulheres é “procure conhecer bem a pessoa com quem está se relacionando”.
Infelizmente, pondera a delegada, para a esmagadora maioria da população, o homem que divulga cenas fazendo sexo com uma mulher é “o cara, o pegador, o garanhão, o machão” e a mulher que foi filmada é “a desfrutável, a vadia, a que não presta e não vale nada”, porque a sociedade é machista e conservadora ainda em pleno Século XXI.
E conhecendo bem a pessoa com quem a mulher está se relacionando ela poderá identificar padrões de comportamentos que indiquem desvio de caráter ou posturas psicológicas próximas da propensão para esse tipo de conduta. “Ele já terá se mostrado possessivo, ciumento, machista e com propensão para a misoginia”, completa.
Há no Congresso Nacional três propostas distintas que intensificam a punição para quem expõe imagens ou cenas íntimas sem autorização de personagens dos quadros.