Recebi das mãos do governador Marconi Perillo um relatório, ou “demonstrativo”, dos desembolsos para amortização da dívida fundada do Estado de Goiás. De 1999 até 2017, Goiás pagou 25,4 bilhões de reais, em valores nominais. Em valores atualizados pelo IPCA médio – ou seja, pela inflação acumulada dos últimos anos, esta valor seria de 40,2 bilhões de reais.
Apesar disso, o total da dívida goiana chega perto dos 19 bilhões, metade disso devido ao governo da União, que manda a conta via Secretaria do Tesouro Nacional.
A dívida dos Estados brasileiros viola frontalmente os mais elementares princípios da lógica. Quanto mais se paga, mais ela cresce. Pelos cálculos da STN, lá pelo ano 2050 os Estados ainda estarão pagando esta dívida. Mesmo que não tomem dinheiro emprestado dos bancos ou do agiota da esquina, a dívida continuará sendo cobrada.
No ano 2000, Goiás fechou o ano com uma dívida de R$ 8.145.374.979,38, segundo dados da STN. Estão aí incluídas as duas operações realizadas pelo governo estadual para sanear o BEG e capitalizar a agência de fomento.
Em 2001, o Estado pagou, em valores corrigidos, 1,12 bilhão de reais. Naquele ano, o governo não realizou nova contratação. O lógico é que a dívida caísse para 8,02 bilhão. Contudo, ela cresceu para R$ 8.811.709.886,84. Ela teve um acréscimo de mais ou menos uns 700 bilhões de reais. Ou seja, os encargos financeiros e outros oneradores a fizeram crescer, ao invés de diminuir.
Vejam que curioso: em 2010, a Assembleia Legislativa de Goiás solicitou à Fipe - Fundação Instituto de Pesquisa Econômica, de São Paulo, um estudo analítico do endividamento de Goiás. Num relatório de mais de 60 páginas, os pesquisadores encontraram o dado que se segue.
É o seguinte: no período de 1991 a 2008, a dívida foi de 80,4 milhões de reais a 12,6 bilhões de reais. Neste meio tempo, o Estado pagou mais de 8,8 bilhões. Sem este desembolso, a dívida teria atingido 16,2 bilhões. É sabido que, durante o segundo governo de Iris, o Estado não contratou empréstimos. Durante o de Maguito Villela, o Estado contratou pouco mais de 1 bilhão. Tudo isto somado aos empréstimos realizados nos dois primeiros governos de Marconi, a que já fizemos referência, A diferença entre o que se pagou e os novos empréstimos não passa de 2 bi. Apesar disso, a dívida aumentou.
No relatório entregue a este jornal estão detalhadas, ano a ano, as operações de crédito do governo do Estado. Foram empréstimos para saneamento do BEG, que os governos peemedebistas levaram à insolvência, saneamento financeiro da Celg, que entrou no vermelho por conta das cláusulas ruinosas da venda de Cachoeira Dourada, aumento de capital da Saneago, obras rodoviárias e, junto ao BNDES, empréstimos para amortização da dívida. Empréstimos de menor valor foram empregados em modernização administrativa, segurança pública, modernização fazendária etc. Dos 15 anos de governo Marconi, em sete o Estado não realizou operações financeiras.
Por todo ângulo que se examine a questão, o que mais evidencia é que a dívida mais cresce à medida em que se paga. O que faz a dívida crescer vegetativamente não é tanto as obrigações junto aos bancos, oficiais e privados, mas o devido junto ao Tesouro Nacional.
O que o Tesouro Nacional deu em contrapartida desta dívida dos Estados? Pode-se dizer que não deu nada. É verdade que ela teve uma origem. No final do governo de José Sarney, ainda na década de 80 do século passado, a União rubrrogou-se credora de todas as dívidas dos Estados contraídas no estrangeiro. Os credores externos do Brasil estabeleceram como condição, para voltar a renegociar, que a União assumisse o endividamento externo dos Estados e dos municípios. Isto feito, os Estados passaram a pagar a dívida mensalmente à base de, à época, 16% da receita líquida, com prazo de trinta anos, ficando para resolver lá na frente o saldo devedor se porventura houvesse um.
Em 1997 o governo federal celebrou novo acordo com o Estados. Em princípio, pareceu um bom negócio. Logo se verificou que o negócio foi bom apenas para a União.
Já faz alguns anos que governadores reclamam das condições impostas no acordo e pedem que elas sejam revistas. Isso já levou a uma mudança importante, concretizada em 2016: o indexador da dívida, que antes era o IGP-DI mais uma taxa anual, passou a ser o IPCA ou a Selic o que for menor, mais uma taxa de 4%.
Essa medida era requisitada por governos estaduais porque o IGP-DI tornou-se um índice “injusto”. Em 1997, ele ainda era bem menor do que a taxa de juros Selic, que na época passava até dos 30%, e menor do que o IPCA. Por isso, ele foi escolhido para corrigir o valor total devido pelos Estados anualmente. Quase 20 anos mais tarde, porém, a situação se inverteu: a inflação encontra-se em um nível relativamente alto, enquanto a Selic, mesmo em um nível alto para os padrões dos últimos anos , ainda está comparativamente baixa em relação com os níveis dos anos 1990. Já o IPCA acumulado desde 97 também é muito menor do que o IGP-DI do mesmo período.
Mas trocar o índice que ajusta a dívida não foi o suficiente. Com o agravamento da crise econômica, os Estados estão vivendo muitos problemas fiscais, assim como o governo federal, tornando ainda mais improvável que eles consigam honrar suas dívidas. Os motivos para que o problema se agravasse são: algumas medidas do governo federal que prejudicaram a arrecadação dos Estados; e também a falta de ajuste fiscal mais rigoroso por parte de alguns Estados, não sendo este o caso de Goiás.
O fato é que, pela quantidade de desembolso, Goiás já pagou a dívida para com a União várias vezes. Ela cresce por conta de encargos financeiros e contabilidade criativa. É uma dívida sem contrapartida, por isso mesmo imoral. É como se Goiás fosse um reino vassalo que devesse tributos a um império, que pela forma das armas impõe a obrigação. Resumindo, trata-se de um roubo perpetrado com método e requinte. Mesmo assim, um roubo.
Marconi diz que esta dívida é “injusta”. O que se paga mensalmente ao Tesouro, apenas para manter o nome limpo na praça, daria para construir hospitais, reaparelhar o serviço público, dar aumento ao funcionalismo. Marconi chegou a pedir a Fernando Henrique Cardoso que perdoasse a dívida, com o Estado o compromisso de aplicar, em Segurança Pública, o que seria transferido a título da amortização.
A dívida pública deveria ser um problema político. O repúdio dessa dívida, pelo menos a que é cobrada pela União, deveria virar bandeira de luta a unir todos os partidos. Mas, desgraçadamente, o assunto é desconhecido pela grande massa popular. Preocupados com a corrupção da burocracia estatal, obcecados em deleitar-se ante a visão de Lula na cadeia, a classe média, por exemplo, mal se dá conta de como o Sistema da Dívida Pública, na acepção de Maria Lúcia Fatorelli, a rouba todo santo dia.
Mas haverá momento em que algum governador de Estado, ou algum senador de Estado periférico, terá, por necessidade, de levantar a bandeira do repúdio da dívida. Ele terá que se articular com prefeitos e governadores numa campanha que levante a indignação da sociedade. Quando, então, as massas populares estiverem em marcha contra esta dívida injusta, a União renuncia a ela ou a República cairá.