- Tese de doutorado mostra como município representa a dor de Cristo e dos seus seguidores nos dias de Quaresma e Páscoa
A chegada da Páscoa para os goianos tem um valor especial: tradicionalmente, a história do Estado foi sedimentada a partir desta data e de outras festividades com forte tradição católica.
Os dias que antecedem a perseguição de Jesus fortalecem a inteligência coletiva e sedimentam laços históricos e valores numinosos. Em especial, um município goiano vive de forma mais profunda a trajetória final do Jesus e incorpora seu sentido: a cidade de Goiás.
Nela ocorre a Procissão do Fogaréu. É onde se sente de forma mais presente a simbologia da quaresma e da Páscoa. Tese de doutorado de Rafael Lino Rosa defendida recentemente na Pontifícia da Universidade Católica (PUC-GO) aborda em parte como se constitui esta religiosidade vilaboense.
No estudo, ele mostra o sacrifício vicário de Cristo e como suas dores tornam-se fatores de identidade do povo goiano. Trata-se de sedimentação da ideia de como os valores culturais são intrínsecos ao Estado.
Conforme o autor, a investigação se dá sobre o imaginário e identidade. Mas toca as instituições e próprias pessoas da cidade. “Isso perpassa a ação da Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Passos, a Diocese de Goiás, os poderes públicos e sua atuação nesse período, em que há manifestações carregadas de um profundo sentimento de pertença e de piedade, fazendo parte do Patrimônio Histórico Imaterial na cidade”, diz no estudo.
De acordo com o pesquisador, a expressão da fé se dá através de um intenso sentimento de dor e de martírio, “num ambiente lúgubre carregado de emotividade e cultura”.
Rafael informa que o imaginário vilaboense está “atravessado pela dor e sacrifício de Cristo, cujo martírio e morte se tornou o motivo da fé vilaboense”.
Sob o ponto de vista de Rafael, a “Quaresma e a Semana Santa vilaboenses giram em torno ao culto dos Passos, porque precisam dessa manifestação para que se inicie o ciclo das dores, porque a devoção ao Senhor dos Passos é a forma mais conservada, mais intacta, mais vernacular e histórica das devoções do século XVIII”.
CELEBRAÇÃO
Em Goiás, as celebrações religiosas começam antes com a Semana dos Passos, que remonta o caminhar de Jesus Cristo, da morte à ressurreição.
Toda a celebração reúne grande número de pessoas. O Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) trata a Semana Santa como uma das referências fundamentais do município. A Procissão do Fogaréu é o momento definitivo da celebração.
Conforme explica o historiador Luís Bueno de Souza para o Diário da Manhã, a Procissão do Fogaréu foi introduzida no século 18, mas aprimorada nas últimas décadas.
Através da Organização Vilaboense de Artes e Tradições (OVAT), ela foi retomada pela população a partir de 1965, tornando-se um dos momentos mais importantes da Páscoa brasileira.
“A procissão encena a perseguição a Jesus por seus inimigos: ou seja, antes de ser preso e crucificado. Estes inimigos costumam ser representados por 40 farricocos – que são as figuras mais emblemáticas depois de Cristo, pois são representados por homens descalços, vestidos com túnicas e encapuzados. Eles carregam tochas acesas”, diz Luís Bueno.
Conforme a Prefeitura da Cidade de Goiás, o trajeto começa e termina tradicionalmente na frente da Igreja da Boa Morte. O grupo de pessoas passa pela Igreja do Rosário e Igreja de São Francisco de Paula, acompanhados pelos moradores e visitantes.
FANFARRA
Uma fanfarra que impõe a marcha dos farricocos conduz a procissão. À meia noite da quarta-feira de trevas ela determina o início de uma época de reflexão sobre a condição humana, terrena, mas, sobretudo, aliança com o céu.
Em sua pesquisa, Rafel Lino Rosa, mostra como a dor e o sacrifício instituíram “o ethos da identidade vilaboense”. Para isso, faz uso de autores tradicionais que tratam de identidade, caso de Stuart Hall (2009).
O estudioso diz que a identidade possui “na cultura o seu ethos, no discurso o seu meio de formação e propagação.
“Não é exagero, não é hipótese não comprovada quando se diz que a identidade da cidade é formada por um sentimento religioso de dor e sacrifício, mesmo quando essas pessoas não são exatamente católicas romanas”.
O autor diz que basta que as pessoas tenham se formado na cidade e vivido nela o suficiente para compartilhar com o grupo social os seus significados, dizeres e formas de pensamento. Para Rafael, não é exagero pensar que essa identidade também se capilariza por todo Estado.
Para o pesquisador da PUC-GO, a Quaresma e Semana Santa transbordam para outras cidades do Brasil e do mundo: afinal a cultura é “televisionada e filmografada”.