- Casa em estilo Art déco é demolida na Rua 3 sem autorização da Secretaria de Planejamento e Habitação de Goiânia e levanta questionamento: até que ponto o acervo arquitetônico e histórico de Goiânia e do estado está protegido?
- Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e não expulsar os moradores para recriar um cenário artificial
- Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e Seplanh explicam o que já é feito para preservar o patrimônio histórico-cultural da capital e menciona o Plano Diretor em tramitação na Câmara Municipal como medida de proteção ao acervo histórico de Goiânia
Preservar e cuidar da manutenção do patrimônio cultural construído é um grande desafio da atualidade. O crescimento das cidades, a expansão imobiliária, o déficit habitacional e os impactos ambientais constituem fatores que desafiam os gestores públicos a confrontar o desenvolvimento iminente, com a necessidade de minimização de impactos ambientais e sociais.
Ao circular pelas cidades do interior do país, e em algumas capitais, inclusive, observa-se, com frequência, a degradação de inúmeros imóveis seculares, de valor artístico e cultural, de propriedade particular ou pública, que lamentavelmente dão lugar a outras edificações. Estas surgem de maneira abrupta e se sobrepõem à paisagem vernacular, tradicional, desconsiderando todos os condicionantes conformadores do espaço urbano e sua história. Desse modo, a leitura espacial e sua compreensão ficam comprometidas, uma vez que os suportes físicos da memória das cidades são apagados e dão lugar a construções que não dialogam e não respeitam o meio existente.
O exemplo mais recente é o do antigo Restaurante Dona Cristina, que funcionava na Rua 3, no Centro, bem próximo à esquina com a Avenida Araguaia. A grande e bonita casa ao estilo arquitetônico Art déco foi ao chão para a construção de uma estrutura mais nova, embora ainda não se saiba a natureza do projeto futuro. No entanto, o que causou surpresa para a equipe de reportagem foi o fato de que a Secretaria de Planejamento e Habitação (Seplanh) nem mesmo sabia do ocorrido, pois em nenhum momento lhe foi solicitada autorização, e nem mesmo uma denúncia formal se fez ouvida junto à comissão de fiscalização.
“Nós não tínhamos conhecimento desse caso, não chegou até nós nenhuma solicitação que precedesse a demolição, e nenhuma denúncia depois que essa casa foi ao chão. Mas diante dessa situação, já de imediato encaminharemos uma equipe fiscalizadora para analisar a situação e, ao confirmar-se a natureza da denúncia, o proprietário será imediatamente notificado e multado”, afirma William Assunção, da editoria de Planejamento Urbano e Habitação.
A casa em questão foi demolida em meados do mês passado, e um usuário do Facebook postou uma foto denunciando o caso pela rede social. Ao ver a triste imagem, diversas pessoas expressaram sua tristeza e indignação, inclusive um reconhecido perfil, o “Guia Turístico Art Déco Goiânia”, que comentou: “Uns com vontade de engessar, outros de destruir, outros de usar, outros de salvaguardar, outros sem saber o que fazer. E assim nosso centro continua no mesmo abandono: falta de segurança, estacionamento, o social deixado de lado, fachadas cobertas por um material publicitário sem normas, memória apagada…”.
POLÍTICAS DE PRESERVAÇÃO
A partir de tal acontecimento, algumas questões se fazem pertinentes: até que ponto o acervo arquitetônico e histórico de Goiânia e do estado está protegido? Até quando o maior expoente da Art déco ainda será ameaçado? O quanto o Estado se preocupa e realmente preza pela manutenção e preservação histórica da identidade de uma das capitais brasileiras mais ricas cultural e identitariamente do Brasil?
A partir disso, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) foi procurado pela reportagem do Diário da Manhã para responder essas e outras questões acerca da preservação do patrimônio histórico e cultural de Goiânia. Em nota, o instituto disse que O chamado “Acervo arquitetônico e urbanístico Art déco de Goiânia” inclui 22 bens da cidade, representativos de seu acervo Art Déco.
A lista inclui o conjunto da Praça Cívica (coreto, fontes luminosas, obeliscos com luminárias, torre do relógio da Avenida Goiás), os edifícios do Fórum e Tribunal de Justiça, da Residência de Pedro Ludovico Teixeira, do Departamento Estadual de Informação, do Palácio das Esmeraldas, da Delegacia Fiscal, da Chefatura de Polícia, da Secretaria Geral e do Tribunal Regional Eleitoral. Também incluem o núcleo pioneiro de Campinas, cujos edifícios do Palace Hotel, Subprefeitura e Fórum de Campinas e o Traçado Viário dos Núcleos Pioneiros fazem parte. Como bens isolados, ou seja, fora de um núcleo histórico, fazem parte o Liceu de Goiânia, o Grande Hotel, a Escola Técnica, a Estação Ferroviária, e o trampolim e a mureta do Lago das Rosas.
Ainda de acordo com o Iphan, os proprietários desses bens (seja o governo do estado, Prefeitura, União, ou mesmo um imóvel particular) possuem o dever de zelar e manter cada um deles, de modo que são esses proprietários os responsáveis diretos pela conservação. Todavia, o instituto tem uma atuação direta junto a esses bens, em um trabalho contínuo de fiscalização e acompanhamento de possíveis intervenções.
Mais recentemente, o Iphan investiu recursos em diversas ações, como trabalhos de educação patrimonial em várias cidades goianas, a produção de um inventário da arquitetura residencial em Goiânia (em parceria com o Ministério Público Federal e a Universidade Federal de Goiás) e R$ 12,5 milhões na Requalificação urbana da Praça Cívica de Goiânia, que é parte desse conjunto tombado.
Atualmente, a Estação Ferroviária também vem passando por uma importante intervenção, orçada em R$ 5,87 milhões. Tanto ela quanto o Grande Hotel, situado na Avenida Goiás, esquina com a Rua 3, são de posse da Prefeitura de Goiânia. De acordo com a Seplanh, a Secretaria Municipal de Cultura (Secult) aguarda obter a propriedade definitiva do edifício para iniciar também um processo de restauração do local.
O inventário mencionado anteriormente incluem cerca de 300 edifícios de valor histórico e cultural para a capital goiana. Esse inventário impõe diretrizes e certas restrições a fim de proteger a integridade do edifício, embora não faça restrições quanto à demolição. “Ele apenas enumera e evidencia as construções históricas da capital e, caso o proprietário deseje demolir ou fazer uma profunda reforma estrutural ou estética que vá comprometer a identidade do edifício, uma autorização deverá ser requerida junto à Seplanh e à Secult. Tal solicitação será analisada e, caso aprovada, o proprietário terá toda e qualquer liberdade, dentro dos limites legais, para demolir ou reformar esse edifício”, explica William Assunção.
O Plano Diretor que está em discussão neste ano na Câmara Municipal prevê iniciativas e subsídios para diminuir a poluição visual das fachadas do Centro de Goiânia e, consequentemente, contribuir com a preservação das edificações históricas da cidade. A previsão é de que o Plano Diretor seja votado até julho deste ano, se nenhuma nova alteração for necessária.
Equacionar a proteção do patrimônio cultural e a expansão urbana é um desafio não só do poder público responsável pela gestão das cidades, mas também dos cidadãos, principais guardiães e interessados no desenvolvimento do seu habitat com qualidade sustentável. De um lado, os poderes legislativo e executivo devem estabelecer uma ligação entre as políticas de uso e ocupação dos solos com a política de proteção do patrimônio cultural. A partir disso se estabelece os meios e mecanismos de proteção do acervo cultural, e garante a eficácia no cumprimento do que é determinado em lei. A comunidade, por sua vez, deve se responsabilizar pela guarda e difusão deste acervo, a fim de compreendê-lo como parte inerente de sua própria história.
ENTREVISTA COM MARIA LUCIA BRESSAN PINHEIRO
HISTÓRIA VIVA
Maria Lucia Bressan Pinheiro é professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP) e diretora do Centro de Preservação Cultural Dona Yayá (CPC-USP). Ela rema contra a corrente segundo a qual apenas monumentos belos deveriam ser preservados. Em entrevista, ela diz que esse ramo da arquitetura é pouco prestigiado no Brasil porque prevalecem os interesses econômicos dos especuladores imobiliários.
História Viva – A preservação do patrimônio histórico, no senso comum, tornou-se sinônimo de tombamento no Brasil. Trata-se de uma visão equivocada?
Maria Lucia Bressan Pinheiro – A preservação é muito mais abrangente que o tombamento. A preservação diz respeito a um conjunto de medidas, desde intervenções físicas no bem cultural, até elaboração de políticas públicas. São iniciativas destinadas à preservação do patrimônio para as gerações futuras, e o tombamento é uma dessas medidas. Geralmente é o passo inicial no Brasil, porque não temos uma cultura preservacionista arraigada na sociedade. Somos muito carentes, com problemas básicos não resolvidos, como pobreza e falta de escolaridade, e isso limita a possibilidade de fruição do patrimônio. As pessoas nem param para pensar que existe um passado, com coisas esteticamente bonitas, que contam as nossas origens, a nossa história. A maioria está tão preocupada com o básico que nem tem olhos para o prazer. Não há como negar que existe uma hierarquia de necessidades. De outro lado, no mundo inteiro, todos os valores da nossa cultura atual são de descarte, de inventar novidades, buscar o novo pelo novo, até para movimentar a economia. Além disso, como fomos uma colônia, sempre imitamos um paradigma português e europeu. Estamos habituados a esperar modelos de outras sociedades.
HV– Há cidades que tombam pouco e preservam muito, inclusive Paris é um exemplo. Como e por que a dinâmica de preservação no Brasil é diferente?
Maria Lucia – Certamente há cidades no exterior que preservam mais, em razão do contexto. Os nossos municípios sofreram um processo de crescimento rápido e súbito com a industrialização, a partir dos anos 1930. Instalou-se uma população urbana desenraizada do local. Em Paris e Roma, que preservam mais, as cidades cresceram ao longo de muitos séculos. Passaram por essa fase de explosão, mas quando já eram grandes e tinham uma população arraigada, muito identificada com os centros históricos. Tinham outra relação de pertencimento ao espaço.
HV– A quem interessa a política de só preservar se tombar?
Maria Lucia – Há uma apatia em relação à preservação. Fica tudo a cargo do Estado. No Parlamento, não há representantes desse interesse. Isso acontece porque os atingidos são os especuladores imobiliários. Não são todos, mas há empresas e pessoas que não podem imaginar ter uma atividade lucrativa em uma casa tombada. Um empreendimento, como um restaurante, ficaria muito mais charmoso. Chamo de especuladores aqueles que só veem uma forma de ganhar dinheiro: por meio da destruição.
HV– Por que no Brasil só se pensa em preservar imóveis coloniais?
Maria Lucia – É um viés dos modernistas, de que o século XIX não interessa. O próprio Lucio Costa diz isso, o mélange de estilos daquela época foi visto como algo que não tinha valor algum. Não era nem puro como o colonial, nem puro como o moderno. Esse era o viés de quem trabalhava no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) nos anos 1930-40. Não é democrático privilegiar determinado tipo de bem cultural. Há exemplos de imóveis não coloniais que deveriam ser preservados. O único critério que julgo interessante é de um bem cultural que revele o modo de vida das pessoas. Gosto de ver os vários momentos de uma cidade representados. Há a arquitetura de casas dos Jardins e do Pacaembu (bairros de São Paulo), dos anos 1930, com cara meio normanda, meio espanhola. São impuras, mas muito características de uma época. As fazendas de cacau no Nordeste são outro exemplo. Há ainda a arquitetura alemã e italiana no Sul do país